Ana Rita de Calazans Perine
8 min readJul 9, 2021

--

TRANSDISCIPLINARIDADE E INCERTEZA — Tempos de Travessia

O pensar é equalizado pelo sentir, que qualifica o fazer… O que me toca difere do que me cabe, ainda que o abrace. O que me toca é o que me afeta, o que me converte em sujeito da experiência. O que me toca também me muda, transforma e transmuta.

Tempos de Travessia, a partir do que é capaz de acentuar, a percepção de si e do mundo que habita, nos leva a repensar modos de ser e estar diante de incertezas, como seres singulares e plurais que somos.

Temos especificidades muito peculiares como individualidades, mas essas estão em contínua relação com as coletividades que integramos (família, amigos, organizações, sociedade). A carência de uma, assim como a abundância, interfere na outra. Quanto mais cientes dessa interseção, mais corresponsáveis pela evolução de nossas comunidades nos tornamos.

Flutuações das ordens mais variadas, sócio-econômicas e político-culturais, demandam ajustes necessários que nos fazem colocar em prática repertórios, técnicas e teorias em diálogos continuados rumo a um conhecimento mais ampliado e universal. Por meio de referenciais humanos minimamente compartilhados (o que nos iguala enquanto espécie) somos capazes de acolher, legitimar e crescer com a diferença, e não apesar dela.

TERRITÓRIO DA EXPERIÊNCIA — Ativa e amplia repertórios

A transdisciplinaridade está para a unicidade / integralidade assim como a incerteza está para a separatividade / fragmentação. Por detrás da contradição aparente, a busca se revela. Quanto mais ampliada e interligada a percepção de si, de mundo e de realidade, maior a probabilidade de uma vida plena, efetiva e afetiva. Onde o individual dialoga com o coletivo e o interno se expressa no externo, como arrebatamento e perplexidade.

Em um mundo de flutuação e incertezas, o “caminho das pedras” é o ajuste da rota e do ritmo do passo, mediante a consulta do repertório, experiência (fruto maduro do aprendizado consciente) colhida no fluxo da existência, entre assombros e encantamentos.

A transdisciplinaridade nos reconecta com o horizonte. Ao nos aproximar da realidade experimental que é o viver, confere mais cor e brilho aos níveis do aqui e agora, porque o interliga constantemente aos níveis do antes e o do depois, em novos e mais amplos patamares.

Nessa complexa dialógica entre mundos, emerge: o fluxo, o movimento, a plasticidade… Dinamismo natural que acontece ao reconhecermos e manusearmos tons e texturas na grande paleta do existir.

Transdisciplinaridade é reconhecer a singularidade das lentes de percepção de mundo que trago, legitimar as outras tantas, por mais diferentes que sejam das minhas e trocar impressões a cerca do que se apreende, do que se toca, do que se abarca. Quando a escuta é atenta, a acolhida é amorosa e a fala é calibrada, a expansão de mundo acontece.

A transdisciplinaridade transcende muros escolares e grades pedagógicas. A transdisciplinaridade é vida, que impede a necrose de disciplinas, homens e mundos. A jornada que nossos antepassados fizeram e que nos permitiu chegar até aqui traz muito dela em seu bojo. Egos precisaram ser reposicionados, verdades questionadas, conhecimentos entrelaçados e mentes expandidas.

TEMPOS LÍQUIDOS — Zygmun Bauman

Tempos sem seta e direção, onde marcam presença a fragmentação, a descontinuidade, a pressa, o vazio, a angústia e a ansiedade. “Estamos constantemente correndo atrás, o que ninguém sabe é correndo atrás de quê.”

Somos treinados a viver com pressa. O mundo tornou-se um contêiner sem fundo de coisas a serem consumidas e aproveitadas. A pressa — e o vazio — é fruto das oportunidades que não podemos perder. Somos dependentes dos estímulos externos, perdemos a capacidade de nos autoestimular.

Tínhamos basicamente duas formas de organização: o tempo cíclico (se repete dia após dia, ano após ano, sociedades agrárias) e o tempo linear (se move em direção ao futuro, sociedades industriais). Percebemos uma terceira organização do tempo, da modernidade líquida: sem seta, sem direção, dissipado numa infinidade de momentos, cada um deles episódico, fechado e curto, apenas frouxamente conectado com o momento anterior ou o seguinte, numa sucessão caótica que gera ansiedade e a sensação de ter perdido algo.

O mundo pós-moderno é marcado pela angústia das possibilidades, das escolhas e da falta de modelos.

AMPLIAÇÃO PERCEPTIVA — Descortina novas realidades

Pluridisciplinaridade — Estudo de um objeto por diversas disciplinas. A análise de uma pintura pode envolver a história da arte, a sociologia, a física…

Interdisciplinaridade — Transferência de métodos entre disciplinas, encontro entre especialidades. Pode ser voltada para a aplicação do conhecimento, pode ser orientada para questões epistemológicas, pode ser direcionada para a emergência de novas disciplinas.

Transdisciplinaridade — Cria novas sínteses de percepção da realidade, busca a compreensão do mundo pela unificação do conhecimento. Para tanto, requer a percepção de:

  1. Vários níveis de realidade — Considerar cada problema não mais a partir de um único nível de realidade, mas situando-o simultaneamente no campo de vários níveis de realidade.
  2. O Terceiro Incluído / Conciliação dos contraditórios — Não mais esperar encontrar a solução de um problema nos termos da lógica binária, “verdadeiro” ou “falso”. A solução de um problema só pode ser encontrada pela conciliação temporária dos contraditórios, ligando-os a um nível de realidade diferente daquele no qual esses contraditórios se manifestam.
  3. Complexidade — Reconhecer a complexidade intrínseca do problema, a impossibilidade da sua decomposição em partes simples, fundamentais. Substituir a noção de fundamento pela coerência do mundo multidimensional e multireferencial.

PROCESSO DO CONHECER — Abordagens básicas

  1. Interdisciplinaridade Fraca — Estreita o estudo da realidade dos fenômenos no que se denomina como disciplina especializada.
  2. Interdisciplinaridade Forte — Promove um diálogo intenso entre diversas disciplinas, para maior abrangência de enfoques na compreensão dos objetos de estudo, compreendendo aqui a interdisciplinaridade e a pluridisciplinaridade.
  3. Metadisciplinaridade — Iniciativas de compreensão dos objetos de estudo, através da produção de conhecimentos que gerem sínteses oriundas de fundamentos universais, aplicáveis a todas as disciplinas, inserindo-se aí as experiências transdisciplinares de fato.

OS QUATRO PILARES DA EDUCAÇÃO — Jacques Delors

  1. Aprender a conhecer — Combinar cultura geral, suficientemente vasta, com a possibilidade de trabalhar em profundidade um pequeno número de matérias. O que significa aprender a aprender e beneficiar-se das oportunidades oferecidas pela educação ao longo da vida.
  2. Aprender a fazer — Adquirir qualificação profissional e competências para trabalhar em equipe e enfrentar desafios. Experiências sociais ou de trabalho que se oferecem aos jovens e aos adolescentes, quer espontaneamente, fruto do contexto local ou nacional, quer formalmente, graças ao desenvolvimento do ensino alternado com o trabalho.
  3. Aprender a viver juntos — Desenvolvendo a percepção do outro e a percepção das interdependências. Realizar projetos comuns e preparar-se para gerir conflitos. Respeito pelos valores do pluralismo, da compreensão mútua e da paz.
  4. Aprender a ser — Desenvolver sua personalidade e estar a altura de agir com crescente capacidade de autonomia, de discernimento e de responsabilidade pessoal. Não negligenciar as potencialidades de cada indivíduo, singulares e plásticas.

SETE SABERES NECESSÁRIOS — Edgar Morin

Facilitadores da integração e reunião dos conhecimentos. Fundamentais para romper com a fragmentação do olhar e para civilizar a Terra.

  1. As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão / CONHECIMENTO — Para a compreensão das limitações do próprio conhecimento é imprescindível o entendimento do processo de se conhecer, que envolve tradução seguida de reconstrução.
  2. Os princípios do conhecimento pertinente / CONDIÇÕES DO CONHECIMENTO — Que não mutila seu objeto. Visão contextual global do conhecimento e suas implicações com as realidades locais. O ensino disciplinar mostra a parte (fragmento), não o todo (totalidade).
  3. Ensinar a condição humana / IDENTIDADE HUMANA — Não fragmentar a percepção da integralidade dos indivíduos, trazer o entendimento da sua natureza multidimensional: física, biológica, psíquica, cultural, social e histórica. Por mais indecifrável que seja a identidade humana, o ser humano é parte constituinte intrínseca da sociedade e vice-versa. A realidade humana é trinária: indivíduo-sociedade-espécie. É preciso ensinar a unidade dos três destinos.
  4. Ensinar a identidade terrena / COMPREENSÃO HUMANA — Empatia, identificação. O processo educacional deveria mostrar as ligações entre todas as partes do mundo e a qualidade destas interações, evidenciando o destino comum da humanidade. Compreender não só os outros como a si mesmo. Do latim, compreendere, colocar junto todos os elementos de uma explicação. Não ensiná-la agrava o individualismo, o egocentrismo e o egoísmo. A redução do outro impede a compreensão.
  5. Enfrentar as incertezas / INCERTEZA — Preparar os indivíduos para as incertezas inerentes à própria condição da vida. O inesperado faz parte da nossa história, há que mostrá-lo em todos os domínios do conhecimento.
  6. Ensinar a compreensão / CONDIÇÃO PLANETÁRIA — Conhecer o planeta é difícil porque requer distância em relação ao imediato. Todos os problemas que afetam de vida e morte a humanidade estão amarrados uns aos outros. Há que cultivar o encontro e o reconhecimento do outro, só assim para ultrapassar questões ideológicas, econômicas, sociais…
  7. A ética do gênero humano / ANTROPO-ÉTICO — Aspecto individual, social e genérico da ética. Seu lado social não tem sentido senão na democracia, onde o cidadão deve se sentir solidário e responsável. Desenvolveria o entendimento das pessoas, como sendo ao mesmo tempo indivíduo / sociedade / espécie, assumindo assim a condição de cidadania terrena.

PENSAMENTO BIOSSISTÊMICO — Instituto Orior

Transdisciplinaridade aplicada pela ótica dinâmica e interconectada da vida.

Princípios Vitais ou Biossistêmicos — Metainteligências que regem a vida. Forças de expressão da natureza presentes em qualquer organismo, desde uma bactéria até o ser humano e suas organizações. Servem de base à promoção da educação para o desenvolvimento sustentável no país e exterior. Induzem a maneira de ser dos indivíduos, das organizações em geral e a forma de estruturação e condução de nações. Explicam as causas de iniciativas bem sucedidas e longevas. Também elucidam a origem de conflitos, sempre decorrentes da divergência de olhares preferenciais de mundo. São eles: Identidade — individuação; Integridade — conexão; Potestade — poder natural e instituído; Inventividade — criatividade; Potencialidade — conhecimento; Viabilidade — energia; Produtividade — ação.

Sensos de Conexão — Facilitadores da nossa caminhada pela existência, justo por aguçar e ampliar o nosso olhar. São eles:

  1. Histórico — Nossas origens culturais e nosso percurso histórico nos permite desenvolver uma consciência da identidade. A noção de identidade mais clara facilita o comportamento histórico mais lúcido, comprometido com a construção do futuro.
  2. Com a natureza — Internalizar a dinâmica de evolução da natureza em todas as suas fases, cósmica e planetária, das partículas mais ínfimas à matéria organizada, daí para a vida e para a complexidade dos comportamentos animais, até a possibilidade da abrangência da consciência humana, percebendo-se não só inserido na vida, mas como a própria vida encantada com ela mesma.
  3. Com as organizações — Perceber as organizações como entidades vivas passadas de geração para geração. Enquanto seus integrantes — através de nossas intenções, sentimentos, conhecimentos e comportamentos interativos — somos seus portadores.
  4. Comigo mesmo e com os outros — Compreender mais a natureza humana e o próprio viver. Lidar com vocações, preferências e temperamentos. Administrar emoções e pensamentos.

O desafio na construção de um Projeto de Nação que abarque os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável — ONU: atuarmos como Agentes de Transformação Global (ATG), orientando nossas condutas por uma leitura de mundo mais abrangente, capaz de aglutinar metainteligências na promoção de um diálogo íntimo e simbiótico entre os biogramas humano e organizacional, entrelaçando mundos individual e coletivo, interno e externo.

O Biograma Humano possibilita o exercício da tomada de consciência dos nossos: estado de espírito, atitude mental, comportamento, ambiente íntimo e ambiente ampliado. O Biograma Organizacional amplia nosso radar perceptivo, integrando: indivíduo, organização, mercado, sociedade e planeta. Ambos atuam sobre a fragmentação do olhar, restauram a malha invisível que a todos une, na medida em que evidenciam e promovem ações mais conscientes e responsáveis.

Nesta jornada de reconstrução, todos os braços e abraços serão necessários!

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

DELORS, Jacques. Educação, um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre educação para o século XXI. Brasília: MEC, UNESCO e Cortez, 1998.

LARROSA, Jorge. Escritos sobre a Experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários Para a Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2011.

www.orior.com.br Instituto Orior / Resgate Filosófico, Transdisciplinaridade e Sustentabilidade.

--

--

Ana Rita de Calazans Perine

Filósofa Clínica, Pesquisadora, Educadora, Mobilizadora Social e Empresarial / Instituto ORIOR — Resgate Filosófico, Transdisciplinaridade e Sustentabilidade.