Ana Rita de Calazans Perine
4 min readMar 9, 2023

LUTA, REVERÊNCIA, UNIÃO E CELEBRAÇÃO

O Oito de Março, Dia Internacional das Mulheres é um dia de luta, de reverência, de união e de celebração. Lastimo pelos seres que ainda o temem, por aqueles que simplesmente o toleram, pelos que o reduzem, por aqueles que o usam como verniz, aparentando coerência que nem mesmo enquanto busca se faz minimamente presente.

Fiquei monitorando as repercussões. As falas nervosas, magoadas e inflamadas me pareceram em menor número… E eu fico me perguntando o porquê: a raiz seria medo, indiferença, vergonha ou consciência?

Tenho percebido, não sem conter o riso, um certo constrangimento em nós e entre nós de nos felicitarmos, receber e ofertar flores. Atenção, respeito, demonstrações de carinho e cuidado não são atestados de incapacidade, tampouco submissão, Minha Gente! Não se acanhem…

(E agora falo em primeira pessoa, embora imagine estar acompanhada.) É bonito e faz bem receber flores, ter a porta aberta ao entrar no carro, a cadeira puxada a mesa, o copo servido… É gostoso andar de mãos dadas e até abraçados… Desde que o laço não se faça nó, desde que o movimento de um não obstaculize o do outro.

O desgosto é com a mecanicidade do gesto que converte em morna mesmice, quando não gélida incoerência, o universo das relações. Por falta de um enxergar o outro, a si próprios e o mundo que os cerca. Por falta de diálogo e de aprimorar linguagens. Por falta de qualidade de presença, que também implica em saber se fazer ausente.

Temos muito a aprender e a crescer uns com os outros. Nessa saga, convém (re)visitar o passado, ponderando sobre como nosso comportamento presente, que dita rumos futuros, pode estar a ele alicerçado. Assim, com sensos críticos de causa e pertencimento aguçados, talvez consigamos nos desprender do ontem e do amanhã, acolhendo o hoje como gatilho de transformações — internas e externas, locais e globais — necessárias…

A imagem da mulher associada ao mistério e o misterioso ao diabólico não é nova e foi ampla, larga e perversamente construída ao longo da história. Em rápido mergulho atestamos a veracidade contida na expressão: “não foram bruxas que arderam nas fogueiras, foram mulheres!”

O tratado “Malleus Maleficarum”, conhecido como “O Martelo das Feiticeiras”, escrito em 1487 pelos inquisidores Henrich Kramer e James Sprenger, tece em riqueza de detalhes as especificidades de uma bruxa e os sórdidos testes de autenticidade. Não fossem tão macabras as provas seriam inverossímeis, tamanha a infantilidade e completa falta de noção do dado comprobatório. Já o livro “Mulheres e Caça as Bruxas”, de Silvia Federici, de 2018, leva luz aos períodos de trevas.

Quem foram estas mulheres, tidas como bruxas e sentenciadas à morte pela fogueira? (O fogo era utilizado como forma de eliminar o sangue e, assim restringir a ameaça de contaminação). Mulheres que colhiam e cultivavam, que conheciam plantas e delas se utilizavam para dar alívio as dores, promover curas de doenças, produzir poções afrodisíacas, contraceptivas e para interromper a gestação. Saberes convenientemente considerados maléficos e satânicos, já que as práticas se convertiam também em ameaça as novas sociedades profissionais, como a medicina, que começa a se organizar como categoria no século XVI. No final da Idade Média tínhamos uma forte disputa entre os saberes populares e os saberes especializados.

Essas mulheres se ocupavam do cuidado e cura do corpo graças a um saber tradicional baseado na utilização de ervas e prática de ritos. Quem nunca colheu ou comprou a macela colhida antes do sol nascer na semana santa ou preparou um inocente unguento ou um chá relaxante antes de dormir que atire a primeira pedra… Também eram perseguidas e sentenciadas à morte como bruxas as que eventualmente, pela morte do marido e sem a figura de um novo homem para se subordinar, ficavam na posse de terras, bens e ainda o mais escandaloso, de si mesmas.

A inquisição dos séculos IV ao século XVIII teve um papel fundamental para gerar e fortalecer uma organização social em que a submissão dos corpos das mulheres era imperativa, suas capacidades sexuais e reprodutivas eram controladas e exploradas pelo Estado. Quaisquer prática sexual não reprodutiva e controle de natalidade, vedados. Quando crianças morriam suas mães eram responsabilizadas e automaticamente tidas como bruxas, sendo que a mortalidade infantil decorria da falta generalizada de alimento e de saúde, agravada sempre que a miséria encontrava a epidemia.

As barbáries foram tantas e abriram tantas chagas nas sociedades e relações que estranho seria não provocar algumas dores e espasmos até os dias de hoje. Vale lembrar que o primeiro país a garantir o sufrágio feminino foi a Nova Zelândia, em 1893. O Brasil, apenas em 1932. Antes, em 1928, Juvenal Lamartine, governador de Mossoró, havia autorizado no Rio Grande do Norte.

Não haveria uma ancestralidade capaz de romper com o espaço-tempo, com os ditames geográficos e cronológicos?! Talvez a que nos fortalece no útero da Mãe Terra, independente da representação que invoca… Quem sabe não seja esta a potência atrelada o feminino, a força que permite unir as duas pontas, que faz a Terra se erguer para abraçar o Céu…

A reiterada dessacralização (profanação) e inversão de valores tem sido uma constante há muito tempo, em inúmeras datas. Os conceitos de virgem e de mulher selvagem (tido como sem controle) foram muito deturpados. Ambos coincidiam na pureza original, da mulher se perceber inteira e conectada. Entendo que faça parte do nosso crescimento, sempre que possível, puxar o fio da meada com respeito a percepção de cada qual. O que não podemos admitir é a violência, o atentado a saúde, a dignidade, e a vida.

Desconstruímos para reconstruir em outro patamar de amplidão: fogueira armada, a acendamos juntos, cantando e dançando o respeito, o amor e a liberdade! Sororidade, antes de parida, necessita ser gestada! Ela não é institucional ou estatual, é vivencial! Por mais diálogo, união, fluidez e assertividade…

Ana Rita de Calazans Perine

Filósofa Clínica, Pesquisadora, Educadora, Mobilizadora Social e Empresarial / Instituto ORIOR — Resgate Filosófico, Transdisciplinaridade e Sustentabilidade.