HUMANISMO, ORALIDADE E MEMÓRIA
A partir das matrizes que nos constituem enquanto povo brasileiro e dos muitos brasis que compõem o território nacional
“Estudar as memórias coletivas fortemente constituídas, como a memória nacional, implica preliminarmente a análise de sua função. A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis.
O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro.
A memória é assim guardada e solidificada nas pedras: as pirâmides, os vestígios arqueológicos, as catedrais da Idade Média, os grandes teatros, as óperas da época burguesa do século XIX e, atualmente, os edifícios dos grandes bancos. Quando vemos esses pontos de referência de uma época longínqua, freqüentemente os integramos em nossos próprios sentimentos de filiação e de origem, de modo que certos elementos são progressivamente integrados num fundo cultural comum a toda a humanidade. Nesse sentido, não podemos nós todos dizer que descendemos dos gregos e dos romanos, dos egípcios, em suma, de todas as culturas que, mesmo tendo desaparecido, estão de alguma forma à disposição de todos nós? O que aliás não impede que aqueles que vivem nos locais dessas heranças extraiam disso um orgulho especial.”
Michael Pollak / Memória, Esquecimento, Silêncio
Abordo o tema a partir de um mergulho nas próprias matrizes que nos constituem enquanto brasileiros: indígena, africana e europeia. Apesar de eventuais lugares privilegiados de fala, a depender de quem observa, a miscigenação está impressa na alma de cada brasileiro. Dialogarmos com ela é honrar ancestralidades, potencializar conhecimentos e transformar culturas e sociedades.
Michael Pollak pontua a clivagem entre memória oficial e memórias subterrâneas não estar necessariamente ligada aos fenômenos de dominação, embora sejam frequentes nas relações entre grupos minoritários e sociedade englobante. Em face de lembranças traumatizantes o silêncio a todos é imposto. Seja para não transferir culpas, seja para não gerar mal entendidos, seja para reforçar a consciência tranquila e a propensão de esquecer.
Amadou Hampaté Bâ enfatiza que os atos de falar e escutar correspondem a realidades bem mais amplas do que as usualmente atribuídas, envolvendo a percepção total e a totalidade do ser. A fala, que não deveria estar dissociada de muita escuta, seria força justo por criar uma ligação de vaivém que gera movimento e ritmo, portanto, vida e ação. No universo tudo falaria, o manifestado seria a fala que ganhou corpo e forma.
“Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geração a geração.
O que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligação entre o homem e a palavra. E, pois, nas sociedades orais que não apenas a função da memória é mais desenvolvida, mas também a ligação entre o homem e a Palavra é mais forte. Lá onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é.
A tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial”.
Amadou Hampaté Bâ
O futuro é construído no presente alicerçado pelo repertório, experiência temporal e espacial sedimentada em memória como palco dinâmico da história viva. Território onde a linguagem, que passa pela fala e oralidade, abarca a integralidade do ser, acolhendo o plural que nos toca, atravessa, transforma, transmuta e nos faz singular enquanto povo e nação.
O que diria a nossa brasilidade? De quantos silêncios e omissões se constituiria? Enquanto não ouvirmos a nós mesmos (no mais profundo de nossos medos, delírios, angústias e sonhos), não estaremos aptos a dar voz ao indígena, africano e europeu que trazemos dentro, menos ainda habilitados estaremos para crescer como seres humanos que somos, integrantes da Natureza (que é mãe, colo e berço), capazes de dialogar uns com os outros (no vaivém da fala, que demanda escuta), reorientar condutas e transformar culturas e sociedades.
Darcy Ribeiro ressalta que, pela sua natureza aglutinadora, os povos indígenas foram os grandes responsáveis pela fusão cultural entre portugueses e africanos. Resultante dessa confluência de maneiras de ser, estar e perceber o mundo resultou o conceito do nosso Povo Nação, ainda em construção. Somo um povo mestiço de carne e espírito!
Assim, não há como tratar dos povos indígenas originários sem contextualizá-los, navegando pela diversidade das matrizes que não só nos constituem enquanto “povo” e estampam nossa alma, como nutrem e sustentam a aura coletiva “brasileiro”. Dar visibilidade as matrizes, fazendo emergir apagamentos e silenciamentos impostos, nos coloca diante do abismo, oportunidade rara de nos percebermos como somos: humanos, demasiado humanos… Orgulhos, vergonhas, preconceitos, indulgências, erros, acertos, suores, sorrisos e lágrimas seculares vertem de tramas urdidas e ainda hoje desaguam em resistências e reparações, nem sempre celebradas.
Revisitar passados nas pegadas deixadas ao longo da estrada da existência é qualificar o viver na potencialização de passos presentes e nos ajustes de direção e marcha necessários para viabilizar futuros mais dignos. O processo decanta humanismo, enquanto compromisso individual e coletivo, mas também oralidade e memória, enquanto historicidade revisitada, depurada e revigorada em novas e outras acolhedoras narrativas.
Humanismo enquanto valorização do ser humano e preservação da condição de humano acima de tudo, norteando posturas éticas e democráticas… Oralidade como base e condição fundante do saber, que tem a experiência como substrato e finca raízes na coerência entre sentimento, pensamento, fala e ação. O surgimento da escrita corrobora o dito, já que marca o início do processo de esquecimento, tentativa de não se perder o que já não se dá conta de viver… Memória — diferente de história, justo pelo significante que carrega — provém do que nos toca, atravessa, mobiliza e transforma.
Zygmun Bauman nos alerta sobre o tempo líquido imposto pela modernidade, muito diferente do tempo cíclico ancestral, onde a repetição dava o tom e transmitia a segurança necessária para memórias serem consolidadas. Hoje o tempo se dissipa em infindáveis e fugazes momentos muito pouco conectados, numa sucessão caótica (fragmentada, descontínua, apressada, vazia) que gera ansiedade e a sensação de perda. Somos dependentes dos estímulos externos, perdemos a capacidade de nos autoestimular.
O ser humano sente falta de estar junto, construindo seu próprio tempo e espaço, de sentar em círculo ao redor de uma fogueira, de contar histórias, cantar cantigas, criar rimas e versos, dançar a luz da lua… Hoje, mais do que nunca, com a pressão avassaladora das telas e o escasso tempo cada vez mais exíguo, já que o excedente conquistado é constantemente enxugado pelo deus mercado, pulsa um desejo atávico por presença: temos fome e sede de encontros (com a gente mesmo e com os outros)! As Culturas Populares e Tradicionais, orais por excelência, podem nos saciar. Como lugares de partilhas e experiências humanas éticas, estéticas e místicas, elas são também memória, resistência e comunhão!
A oralidade brilha no estar junto. Ainda que a escrita seja um modismo cotidiano mais frequente e seu suporte aparentemente possa ter vida mais longa, somos nós que a ela atribuímos sentido. O sujeito sutil é virtual, ordem do imaginário, não precisa da presença imediata! Ele se faz (projeta, executa e experimenta) nas interações, interseções que estabelece ao longo do viver. Aí, em cada uma delas, ele encontra a possibilidade de existir. A significação (produção de sentido) se dá na presença, que gera afeto e memória.
Quando a palavra está na voz, há um envolvimento da voz e do corpo. A voz como instrumento que liga o interior de um sujeito ao interior de outro sujeito. Tanto a oralidade viva quanto a oralidade midiatizada acontece por meio da performance, o corpo acompanha a intenção da voz. Ele dança e os instrumentos ressoam a energia da enunciação da voz. Maracás, tambores, pulso, cabeça erguida, pé tocando firme o chão… Quem enuncia tem uma autoridade diante do tempo e do saber!
Viver é performar… Pensemos nos cinco elementos da performance: produção (como eu modulo a voz e me movimento), relação com o outro (corpo disponível para a escuta), conversação, repetição e memória. A modernidade não lida bem com a repetição, mas é a repetição que permite a memória, o afeto e o pertencimento.
Sempre que o contador conta, há uma performance! E o faz a partir do tecido social de sua comunidade narrativa, a partir de seus singulares repertórios. O Mestre da Tradição Popular aprende com a vida! Este aprender envolve procedimentos.
Merleau-Ponty afirma que a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo. O que nos lembra de Sócrates, só sei que nada sei. Trazendo para a roda Arthur Schopenhauer, o homem como medida de todas as coisas, esse reaprender a ver o mundo acontece a partir do sujeito que fala!
Como construir o elemento cuidadoso de escutar o outro sem se perder de si? A filosofia Clínica responde ao regatar o conceito grego de Epokhé: colocar entre parênteses, suspender juízos prévios, pré-juízos que podem ser convertidos, se não vistos e geridos, em preconceitos. Suspendo o meu mundo para melhor acolher o mundo do outro. Só a escuta continuada nos dá autoridade de fala! Como seres singulares e plurais que somos, há que se ter consciência do processo dinâmico e formativo que integramos, há que se perceber o fluxo contínuo da vida. O segredo é alcançado nas interseções que nos propiciam o exercício de conviver, passa por nos colocarmos atentos, respeitosos e generosos nas relações que estabelecemos: com a gente mesmo e com os demais, com as histórias pessoais e coletivas, com a natureza que integramos.
Registros, ainda que direcionem olhares, podem alimentar outras formas de narrar… A oralidade, por sua vez, permitindo elementos de livres traduções, se monstra bem mais flexível diante da rigidez da escrita. Wittgenstein nos lembra que a verdade de certas proposições empíricas pertence ao nosso quadro de referências, o que vale tanto para o que se diz quanto para o que se ouve.
A partir da obra de Darcy Ribeiro, “O Povo Brasileiro” e do DVD de mesmo nome, nossa origem mestiça e a singularidade do sincretismo cultural dela resultante é amplamente dialogada. Nos estudos fica patente o valor da identidade cultural na formação do povo brasileiro e a relevância da oralidade ao traçar fronteira entre pensamento originário e releituras deste. O pensamento originário aparece ligado à fenomenologia descritiva ancestral pelo continuado sentir, pensar e fazer cotidiano. Suas releituras, em contrapartida, são interpretativas e não raro desvinculadas da raiz.
Que possamos separar o permanente da cultura brasileira do circunstancial da conjunta, como alerta e deseja Eduardo Giannetti. A possibilidade de nos constituirmos e emanciparmos enquanto povo e nação brasileira passa pela confluência de saberes, pela conquista da capacidade de dialogarmos de modo complementar com as narrativas históricas de nossa formação, detectando e ampliando o melhor de cada matriz, tanto para perceber o mundo quanto para transformá-lo, ampliando horizontes, fortalecendo laços, respirando humanismo e celebrando diversidades. A meu ver, as Culturas Populares e Tradicionais flertam com este movimento, sobretudo quando brincantes em festas, celebrações e mitos, onde as matrizes indígena, africana e europeia aparecem amalgamadas nos muitos brasis que comportam este multifacetado país.
Resgatando Tierno Bokar, citado por Amadou Hampaté Bâ, a escrita é uma fotografia do saber, não o saber em si. O saber é a luz que existe no homem, herança ancestral de todo o conhecido e transmitido. Trazemos esses saberes latentes, como sementes, em cada um de nós. Saibamos custodiá-las, facilitando o germinar…
A partir dos fragmentos de brasilidade que trazemos, que a mobilização e partilha do melhor em cada um de nós possa tecer as conexões necessárias para construções compartilhadas reais e legítimas; como as das festivas celebrações, onde a originalidade alegre de cada brincante é vivificada pela percepção de estar apoiado na rede da brincadeira que a todos dignamente irmana.
Artigo disponível em áudio, no podcast “Filosofia Clínica — Diálogos Transversais”: https://open.spotify.com/episode/2CAUYqs2RGeg2pOLWm3jOr?si=eb44a9130c094195
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Link ao documentário O Povo Brasileiro, baseado na obra central de Darcy Ribeiro: https://youtu.be/yVWUMOgi6h0?si=zLqSX_nRir27-9UD