FILOSOFIA E ESPIRITUALIDADE

Aplicadas a Gerontologia e outras Transversalidades

Ana Rita de Calazans Perine
31 min readJul 9, 2021
Do “Políticas e Práticas em Atenção ao Envelhecimento”, https://www.editorafi.org/29politicas

A crescente longevidade, apontada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como triunfo da humanidade no século XX, é uma realidade que precisa dialogar seriamente com as Políticas Públicas, com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) / ONU, que engloba, em seu ODS 3: “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades”. O desafio é o do envelhecimento ativo e feliz, fomentado por políticas e programas de promoção de sociedades inclusivas e coesas, centradas no desenvolvimento integral do ser humano, que demanda bases transdisciplinares para melhor compreendê-lo e para lidar com as mudanças físicas e as alterações de funções e comportamentos por elas geradas, além das mudanças psicológicas advindas das alterações dos papeis sociais ao longo da idade. No intuito de combater esses estressores e potencializar os pilares do envelhecimento ativo — saúde, aprendizado ao longo da vida, participação e segurança — cada vez mais Filosofia e Espiritualidade integram outros corpos teóricos, Medicina, Gerontologia, Psicologia, Educação, Administração, Direito… Resultantes das experiências compartilhadas, intervenções sociais e sistêmicas (preventivas, restaurativas e paliativas), alicerçadas pelo exercício da cidadania e fortalecimento dos direitos da pessoa. (Resumo)

Filosofia e Espiritualidade, Autoconhecimento, Longevidade, Cidadania, Saúde e Qualidade de Vida. (Palavras — Chave)

La creciente longevidad, señalada por la Organización Mundial de la Salud (OMS) como el triunfo de la humanidad en el siglo XX, es una realidad que necesita dialogar seriamente con las Políticas Públicas, con el Índice de Desarrollo Humano (IDH) y con los 17 Objetivos de Desarrollo Sostenible (ODS) / ONU, que incluye, en su ODS 3, “garantizar una vida saludable y promover el bienestar para todos y para todas las edades”. El desafío es el envejecimiento activo y feliz, fomentado por políticas y programas para promover sociedades inclusivas y cohesivas, centradas en el desarrollo integral del ser humano, que exige bases transdisciplinarias para comprenderlo mejor y hacer frente a los cambios y cambios físicos de funciones y comportamientos generados por ellos, además de los cambios psicológicos derivados de los cambios en los roles sociales a lo largo de la edad. Para combatir estos factores estresantes y mejorar los pilares del envejecimiento activo (salud, aprendizaje permanente, participación y seguridad), cada vez más Filosofía y Espiritualidad integran otros cuerpos teóricos, Medicina, Gerontología, Psicología, Educación, Administración, Derecho. Como resultado de experiencias compartidas, intervenciones sociales y sistémicas (preventivas, restaurativas y paliativas), basadas en el ejercicio de la ciudadanía y el fortalecimiento de los derechos de la persona. (Resumen)

Filosofía y Espiritualidad, Autoconocimiento, Longevidad, Ciudadanía, Salud y Calidad de Vida. (Palavras — Chave)

Definição de Termos

Gerontologia — Do grego: gero = envelhecimento + logia = estudo. Gerontologia é a ciência que estuda o processo de envelhecimento em suas dimensões biológica, psicológica e social. Esse campo de estudos multidisciplinar investiga o potencial de desenvolvimento humano associado ao curso de vida e ao processo de envelhecimento em diferentes contextos socioculturais e históricos, abrangendo aspectos do envelhecimento normal e patológico. A Gerontologia recebe contribuições metodológicas e conceituais da biologia, psicologia, filosofia, história, direito, enfermagem, medicina, educação e ciências sociais em geral.

Terceira Idade — Termo utilizado pelo médico e gerontólogo francês Jean-Auguste Huet, em 1956, quando, na Assembleia Municipal de Paris, pronunciava-se a cerca dos direitos dos aposentados, classe de pessoas que vivem sua “terceira idade”. A fala deu a entender que seu início cronológico coincidiria com a aposentadoria, agravante de ter sua utilidade social questionada. A Organização Mundial da Saúde (OMS) fixa o início aos 60 anos nos países em desenvolvimento e aos 65 anos nos países desenvolvidos. A Constituição Federal Brasileira menciona 65 anos; o Código Penal Brasileiro, 70 anos; a Política Nacional do Idoso, em 60 anos. A terceira idade não comporta um único conceito, pois além do envelhecimento ser intrinsecamente dependente da historicidade da pessoa, de trajetória sempre singular, ocorre em múltiplas dimensões: biológica, social, psicológica, econômica, jurídica, política. Entre as características o envelhecer: mudanças físicas e psicológicas. As físicas alteram funções, comportamentos, percepções, sentimentos, pensamentos, ações e reações. As psicológicas decorrem basicamente das alterações dos papéis sociais com o avanço da idade. Sob o ponto de vista biológico, Geriatras dividem as idades em quatro fases: Primeira Idade / 0–20 anos; Segunda Idade / 21–49 anos; Terceira idade / 50–77 anos; Quarta Idade / 78–105 anos. Além de dividirem os idosos em três ramos: Idoso Jovem / 66–74 anos; Idoso velho / 75–85 anos; Manutenção pessoal / 86 anos em diante.

Filosofia — Do grego: philo = amigo, amante + sophia = sabedoria. Como amor a sabedoria, a Filosofia traz a busca como referência, o que nos move em direção a uma percepção mais integrada das questões fundamentais da existência, incluindo: homem, vida e mundo. Associado a Pitágoras (570–495 a.C.), que faz uso do termo para distinguir criticamente os que buscam a sabedoria, em um movimento natural e continuado, daqueles que supostamente a detém como se verdade acabada fosse e assim a comercializam (em referência aos sofistas, com quem constantemente dialogava). Historicamente considerada a Mãe das todas as Ciências, a Filosofia englobava outros tantos corpos de conhecimento: medicina, física, política, arte, astronomia, matemática, música, geometria, oratória, religião… Com a expansão das universidades e especialização dos ramos de pesquisa, século XIX, muitas áreas seguem seu desenvolvimento com maior autonomia. Além das Filosofias Aplicadas, ao Cotidiano e a Clínica, emergentes em finais do século XX e início do século XXI, que restauram sua essência prática, hoje se destacam, entre os principais subcampos de pesquisa da Filosofia: metafísica, fenomenologia, lógica e metodologia, ética, estética, filosofia política, filosofia da ciência, filosofia do direito…

Espiritualidade — Definida como propensão humana a buscar sentido e significado para a vida mediante conexão como algo maior que si próprio, a espiritualidade demanda abertura para o ilimitado e intangível (transcendente), mas não requer prática religiosa específica. Frequentemente pesquisas apontam a espiritualidade como importante fator associado a melhora da qualidade de vida e aumento da longevidade. Tanto o é que a Organização Mundial de Saúde (OMS) já a inclui no conceito multidimensional de saúde, junto às dimensões corporais, psíquicas e sociais.

Transversalidade — A transversalidade diz respeito à possibilidade de se estabelecer uma relação entre aprender conhecimentos teoricamente sistematizados (aprender sobre a realidade) e as questões da vida real e de sua transformação (aprender na realidade e da realidade). É mais que interdisciplinaridade, envolve transdisciplinaridade. A interdisciplinaridade promove um encontro das especialidades, onde, para análise de um problema, cada uma das disciplinas envolvidas colabora com sua experiência e linguagem específicas. A transdisciplinaridade vai além, cria novas sínteses de percepções da realidade, que se sobrepõem as experiências específicas de qualquer uma das disciplinas envolvidas no processo de solução do problema.

Filosofia e Espiritualidade — Imbricadas pela jornada de autodescoberta

“Tu tens um medo: Acabar. Não vês que acaba todo o dia. Que morres no amor. Na tristeza. Na dúvida. No desejo. Que te renovas todo o dia. Na tristeza. Na dúvida. No desejo. Que és sempre outro. Que és sempre o mesmo. Que morrerás por idades imensas. Até não teres medo de morrer. E então serás eterno.” (C. Meireles, 1963)

A filosofia está apta a acolher sob a proteção de suas asas, de forma humanamente gregária, tantas linhas de pensamento e expressões humanas quanto abriga a nossa extraordinária singularidade. A espiritualidade, como natural busca de sentido e significado, que decorre do processo de autoconhecimento, é uma delas.

Seus movimentos são naturais, humanos e necessários a uma melhor introspecção e compreensão da historicidade do sujeito. Trazem em si o potencial de descortinar novos horizontes, apresentar rotas novas e estimular caminhos ainda não percorridos. Impulso tão antigo quanto às vicissitudes que todos carregamos.

Visão de mundo, sonho, força e debilidade ficam impressas em todas as nossas ações, espécie de código genético de nossos feitos, sejam eles exitosos ou não. Detectá-lo, tanto no momento presente quanto ao longo do nosso processo civilizatório, e decifrá-lo é função de quem se compromete com sua própria construção.

O deslocamento da humanidade no espaço-tempo se dá através de erros e acertos. Na medida em que ponderamos sobre nossa caminhada, reduzimos substancialmente a incidência de acidentes de percursos e mais próximos ficamos da almejada realização, com efetiva marca positiva no seio da comunidade que nos abriga.

O comprometimento com a escrita consciente, minuto a minuto, de nossa própria história faz vibrar em nosso íntimo a indagação, tão própria do filosofar: o que nos cabe como ponta de lança que foi posta em movimento há milênios?

A resposta chega aos poucos, paulatinamente, pautada no que nos move, na força do exercício da vocação, o que temos de melhor e disponibilizamos ao mundo.

Ninguém é uma ilha, somos seres sociais e é imperioso que assim nos sintamos enquanto aldeia planetária. Em essência, independente da posição espacial (localização geográfica) ou do ranking que ocupamos no pódio da economia ou do tempo (cronologia histórica), é imprescindível que a comunicação se estabeleça. O diálogo deve ser estimulado e vivido, se intencionamos abraçar o que realmente somos: uma comunidade de desenvolvimento, que compartilha experiências bem sucedidas, complementa olhares e desenvolve novas ou recontextualiza antigas técnicas de solução de problemas.

Há que nos percebermos, de fato, como humanidade em marcha! Nesse exercício, passado e futuro se encontram no presente. Somos, hoje, o resultado de ontem e a promessa de amanhã.

Nesse mergulho, despidos de preconceitos e vestidos de humanidade, constatamos que os períodos mágico, religioso, filosófico e científico da humanidade sempre coexistiram, já que respeitadas as naturezas distintas de indivíduos e os desafios enfrentados, todas as épocas fizeram, a seu modo: arte, ciência, política e religião.

Estas quatro macro faces, correlacionadas pelo viés filosófico que as anima, integra e movimenta é prova cabal da pegada de consciência que deixamos registrada no planeta Terra. Analisando-a detectamos o nível de coerência no presente e ao longo da história. E nos deparamos com uma verdade bastante instigante: estudos comparados revelam as semelhanças como maiores e muito mais significativas que as diferenças entre épocas e culturas.

Se somos mais parecidos do que supúnhamos, a ordem dos desafios que enfrentamos não seriam também similares? Seria atitude desprovida de inteligência não legitimar esta via de acesso.

Os antigos nos lembram de que a natureza é um livro aberto a ser por todos lido. Mas também alertam que a falta de alcance perceptivo dissociou a humanidade do meio em que vive e uns dos outros, sendo então necessários outros artifícios que a lembrassem de sua real condição.

Aí se fazem presentes todos os símbolos… Desde os registros pictóricos e grunhidos até a escrita e linguagem… Desde a decantação de ervas e emplastos até a mais alta tecnologia médica… Desde os abrigos em cavernas e a conquistas das primeiras ferramentas à vanguarda das ciências exatas que disponibilizam novos materiais a cada dia… Desde conselhos tribais e confrarias até colóquios, simpósios e fóruns atuais… Desde relações mestre-aprendiz com suas artes e ofícios até as universidades e centros de excelência que disseminam conhecimento e reflexão em nossas sociedades.

Por trás de cada um destes símbolos, há um sentido e um significado que o anima, uma ideia que o move e conduz, uma filosofia que o viabiliza.

Todo símbolo é passível de diversas interpretações, tantas quantas permitir o grau de visão de seu observador. Assim é uma teoria, um livro, um filme, uma música, uma parábola ou um mito. Urge aguçarmos nosso olhar para interligar estas muitas leituras da realidade.

Mito e Experiência Mística / Onde Filosofia abraça Espiritualidade

“O que é um mito? Uma história que brota da história do processo corporal para orientar a vida e indicar valores. Num nível, um mito expressa uma visão do mundo social e pessoal, representa uma cosmologia. Em outro, fala dos desafios e das atribulações no processo de iniciação aos diferentes estágios da vida adulta. Um mito é ordem social que fala de papéis familiares, de conflitos e de resolução. E, finalmente, um mito é um prazer pelo qual fazemos os diferentes personagens do corpo se relacionarem entre si. Um mito ajuda a ordenar as experiências maiores da vida, como lealdade, sexualidade, morte.” (S. Keleman, 2001, p. 27)

O médico e terapeuta alemão, Rüdiger Dahlke, em Qual a Doença do Mundo? / Os mitos modernos ameaçam o nosso futuro, evidencia as profundas incoerências do homem e da sociedade moderna que geram constantes estratégias de “perder ou perder”, consequência da ausência de um olhar integrador que dê conta de perceber as Leis da Natureza atuando tanto no microcosmo Homem como no macrocosmo Terra.

“Tanto no microcosmo quanto no macrocosmo, o crescimento pode mudar de plano ao atingir seu objetivo. Numa sociedade sadia, verifica-se a mudança do crescimento material para o cultural; no plano pessoal, ocorre a equivalente transferência do crescimento físico para o espiritual. Em ambos os planos, à fase de crescimento deve se seguir a de amadurecimento. E, vista em termos globais, essa prova final é iminente.” (R. Dahlke, 2004)

Joseph Campbell, em O Poder do Mito, defende que o mito chega até nós com uma história velada, uma fábula que começou numa data não precisa, que educa a nível individual e coletivo. Traz em seu bojo a resposta do porquê uma coisa veio a ser com ela é. Sua lógica é a da eterna presença.

A característica do mito é poética, diferente da característica sequencial da ciência. Sua linguagem é meta histórica, transcendente, envolve experiência mística, sermos tocados pelo próprio mistério da existência. Mito é a vivência de um tempo sagrado e de um lugar sagrado. Sua grande revelação é a voz da salvação que desponta do fundo do abismo, no momento mais sombrio surge a luz.

A transição da infância em maturidade sexual, da dependência infantil à responsabilidade, bem como os estágios de casamento, decadência física, perda gradual das capacidades e morte são comuns ao ser humano, tanto hoje quanto a trinta mil anos atrás. Para pensar no grande mistério que somos nós e nos mistérios da vida interior e da vida eterna, é necessário usar sistemas de pensamentos já existentes, o mito é um deles.

Tudo que está sujeito ao tempo e ao espaço é dual. Transcender esta dualidade — acima de qualquer categoria de pensamento — é a chave do mistério da existência, região e fundamento do mito.

O tempo é ilusão passageira sobre um fundamento atemporal e nós somos manifestações dentro desta ilusão. O mito harmoniza o jogo das ilusões, equilibra luz (atemporal) e sombra (temporal), integrando o indivíduo à sociedade e a sociedade à natureza. É função da vida experimentar a eternidade aqui e agora, em todas as coisas.

“A vida vive de vida, e a conciliação da mente e da sensibilidade humanas com esse fato fundamental é uma das funções de alguns daqueles mitos brutais, cujo ritual consiste basicamente em matar por imitação daquele primeiro crime primordial, a partir do qual se gestou este mundo temporal do qual todos participamos. A conciliação entre a mente humana e as condições da vida é fundamental em todas as histórias da Criação.” (J. Campbell, 1990)

A Inabilidade de Reconhecer e Lidar com as Diferenças

Por mais que a vida insista na diversidade, a inabilidade de reconhecer e lidar com as diferenças nos acompanha. Como consequência direta desta falta de empatia pelo mundo do outro: rupturas, divisões, distanciamentos, desigualdades, injustiças.

Os principais desafios do homem e mundo modernos são ocasionados pela falta de um olhar integrador, capaz de nos posicionar de forma mais consciente e coerente no meio em que estamos inseridos. A vida é uma só, embora assuma peculiares diferenciações em sua manifestação. Nós, seres humanos, somos a própria Natureza pensando, falando e atuando. Não há divisão, a ruptura perceptiva é coisa nossa.

A fim de minimizar os estragos oriundos desta falha perceptiva, três grandes movimentos estão crescentemente presentes em nossas sociedades: o do resgate filosófico e/ou integralidade, o da transdisciplinaridade e o da sustentabilidade.

Os Sensos de Conexão

Não há como ampliarmos nosso olhar de mundo, desenvolvendo o ser relacional que somos, sem a ativação dos sensos de conexão: histórico, com a natureza, com as organizações, consigo mesmo e com o outro. Aí radica os espaços do conhecer, legitimar, cuidar e conviver.

Os sensos de conexão nos capacitam a melhor perceber, pensar, compreender e fluir com a dinâmica biossistêmica da existência. Não só facilitam como fundamentam a compreensão e tendências do desenvolvimento sustentável.

A vida, pilar básico da sustentabilidade, jamais será explicada em sua complexidade sem o apoio da transdisciplinaridade. Diante dos naturais embates cotidianos, quanto mais plástica e inclusiva a percepção menor o sofrimento, porque maior a probabilidade de respostas mais conscientes, ágeis e assertivas.

O senso de conexão histórico — Conhecer as origens culturais e o percurso histórico nos permite maior consciência e compreensão dos comportamentos e das dimensões política, social e econômica das comunidades humanas. Revisitar o passado possibilita a noção de identidade e pertencimento, promove um comportamento mais lúcido no presente e um forte envolvimento na construção de um futuro comum.

O senso de conexão com a natureza — Internaliza a dinâmica de evolução da vida, das partículas mais ínfimas à matéria organizada, da complexidade dos comportamentos animais até a abrangência da consciência humana. Promove a nossa percepção como a própria natureza encantada por si mesma.

O senso de conexão com as organizações — Perceber as organizações como entidades vivas que são passadas de geração para geração. Todos somos portadores dessas entidades através de intenções, sentimentos, conhecimentos e comportamentos interativos.

O senso de conexão consigo mesmo e com o outro — Desvenda e respeita a natureza humana, atenta ao próprio viver. Compreende e gerencia: vocações, preferencias, emoções e pensamentos. Não só concede atenção e permite a expressão do outro, do diferente, diante de nós, mas também legitima a sua existência em nós.

O Brasil e os Desafios do Mundo Contemporâneo

Em 2016, Eduardo Giannetti (economista brasileiro) lança Trópicos Utópicos, micro-ensaios como unidades intelectuais e estéticas que empoderam o leitor, em um esforço de manter viva a nossa capacidade de sonhar. Ele recomenda, referindo-se especificamente ao Brasil, não confundirmos o circunstancial da conjuntura com o permanente da cultura: bela, rica, tem muito a oferecer.

As três primeiras partes da obra estão reservadas a análise das falácias da civilização moderna: ciência ser capaz de atender anseios metafísicos do ser humano; tecnologia que prometia controle de natureza em benefício do homem, hoje ameaça o próprio homem; riqueza como grande caminho que conduz à felicidade humana.

A quarta e última parte mostra o Brasil como promessa de alternativa ao modelo tradicional onde ciência, tecnologia e crescimento econômico convertem-se no caminho. Giannetti busca a identidade Brasileira associando movimentos retrospectivos e prospectivos. Os retrospectivos olham para trás, para o passado, para as raízes, para nossa formação enquanto Povo Brasileiro. Os prospectivos olham pra frente, nos lançam para o futuro, estimulam o imprescindível exercício de sonhar coletivamente.

“O futuro se redefine sem cessar — ele responde à força e à ousadia do nosso querer. Vem do breu da noite espessa o raiar da manhã.” (E. Giannetti, 2016, p.181)

Aos descreverem o mundo contemporâneo inúmeros pesquisadores, respeitados texto e contexto, descortinam um panorama sintomático de desfalecimento humano. Entre eles: Enrique Rojas (psiquiatra espanhol), Jorge Larrosa (educador espanhol), Zygmunt Bauman (sociólogo polonês) e Edgar Morin (filósofo francês). Como consequência, os desequilíbrios que assolam a contemporaneidade: psíquicos, ecológicos, sociais e econômicos. Na contramão, movimentos de reorientação da conduta de indivíduos, organizações e nações sinalizam nascente surgimento e intensificação de perfis mais conscientes e integradores, o que nunca foi tão premente. Consciência como propriedade do ser humano que o possibilita apreender-se enquanto ser e apreender-se enquanto relações que o determinam. Urge aumentarmos nosso repertório de competência para viver!

Rojas, em O Homem Moderno, escancara o homem sem humanidade, de percepção tão fragmentada que se perde dele mesmo e do mundo que integra. Cai no vazio existencial. A falta de referenciais fica refletida na escassez de certezas e sonhos. O sucesso passa a ser atrelado exclusivamente ao dinheiro. A clássica tensão entre Ser e Ter dá lugar ao Parecer Ser ou Parecer Ter. O hedonismo exacerbado fere de morte o idealismo. A permissividade traz falta de limites, relativização da ética e fragmentação da moral.

“Frente à cultura do efêmero está a solidez de um pensamento humanista; frente à ausência de vínculos, o compromisso com os ideais. É preciso superar o pensamento débil com argumentos e sonhos suficientemente afetivos para que o homem eleve sua dignidade e suas pretensões. Assim atravessamos o itinerário que vai da inutilidade da existência à busca de um sentido por meio da coerência e do compromisso com os outros, escapando desse modo da grave sentença de Thomas Hobbes ‘O homem é o lobo do Homem.” (E. Rojas, 2013)

Bauman deixa claro o tamanho do imbróglio: “Estamos constantemente correndo atrás. O que ninguém sabe é correndo atrás de quê”. Somos treinados a viver com pressa. O mundo tornou-se um contêiner sem fundo de coisas a serem consumidas e aproveitadas. A pressa — e o vazio — é fruto das oportunidades que não podemos perder. Somos dependentes dos estímulos externos. Estar sozinho — com liberdade de gastar o tempo com nossos próprios pensamentos — é identificado com solidão, abandono, sensação de não pertencer.

O mundo pós-moderno é marcado pela angústia das possibilidades, das escolhas e da falta de modelos. Um mundo instável, líquido, propenso a mudar de forma sob a influência de mínimas, fracas e ligeiras pressões. Um mundo que já não é mais cíclico nem linear, é sem direção, dissipado numa infinidade de momentos episódicos, fechados e curtos, apenas frouxamente conectados com o momento anterior ou o seguinte, numa sucessão caótica que retroalimenta a ansiedade e a sensação de se ter perdido algo. Esse mundo, alerta Bauman, estimula a busca de respostas na Filosofia. Mais que a assistência de filósofos, o mundo líquido requer a coerência individual no processo de busca.

Larrosa, por sua vez, alerta que a experiência, definida como tudo aquilo que nos toca, anda cada vez mais rara. Entre seus impeditivos, aponta os excessos: de informação, de opinião e de trabalho.

Defende que a obsessão pela informação cancela nossa possibilidade de experiência, o único que consegue é que nada nos aconteça. O sujeito moderno é um sujeito fabricado e manipulado pelos aparatos da informação e da opinião. A opinião se tornou automática, quase reflexa. O acontecimento nos é dado na forma de vivência instantânea, pontual e fragmentada. A velocidade e a obsessão pela novidade impede a conexão significativa entre os acontecimentos e a própria memória. E o trabalho — fazer constante — nos engole. Relacionamo-nos com o acontecimento do ponto de vista da ação, tudo é pretexto para sua atividade. Sempre estamos desejando fazer algo, produzir algo, regular algo. Como não podemos parar, nada nos toca.

“A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um ato de interrupção, um gesto quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.” (J. Larrosa, 2014)

Morin apresenta o Pensamento Complexo, a Transdisciplinaridade, como forma de melhor compreender a vida, o homem e de mundo. Enfatiza que para encontrar respostas aos problemas atuais é preciso abraçar o maior desafio de nossos tempos: globalizar e desglobalizar simultaneamente, ter alcance perceptivo para expandir horizontes e atuar segundo esta percepção mais ampliada da realidade (abertura) sem deixar de atentar às idiossincrasias locais e dar respostas coerentes as suas demandas reais (enraizamento). Diante de tantas incertezas, devem surgir novas apostas e estratégias que reconheçam os erros do caminho e que tentem abordagens inovadoras em direção a um mundo não perfeito, mas melhor. Assim, aponta os Sete Saberes: Conhecimento — sempre uma tradução seguida de reconstrução; Condições de Conhecimento Pertinente — não fragmenta o seu objeto; Identidade Humana — englobando a realidade trina, indivíduo-sociedade-espécie, nossa missão é de civilizar o planeta; Compreensão Humana — compreender não só os outros como a si mesmo, a redução do outro impede a compreensão (do latim, compreendere, unir todos os elementos de uma explicação); Incerteza — o inesperado faz parte da nossa história, há que mostrá-lo em todos os domínios do conhecimento; Condição Planetária — conhecer o planeta requer distância em relação ao imediato, todos os problemas que afetam de vida e morte a humanidade estão amarrados uns aos outros; Antropo-Éticaaspecto individual, social e genérico da ética, seu lado social não tem sentido senão na democracia, onde o cidadão deve se sentir solidário e responsável.

Dados Disponíveis e Políticas Públicas

Ao consultarmos os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), comprovamos acentuado processo de envelhecimento da população brasileira, detectado não só através do expressivo crescimento da faixa etária de 65 anos ou mais (cresceu 26% entre 2012 e 2018, ao passo que a faixa de até 13 anos recuou 6% no mesmo período), como pelo crescimento populacional do Brasil estar em queda (cresceu 0,82% em 2018 e 0,79% em 2019). O IBGE projeta uma taxa negativa de crescimento populacional a partir de 2048.

A Fundação Getúlio Vargas (FGV) Social, também trata da transição demográfica. Corrobora os dados indicativos de que população brasileira está vivendo mais, a cada três anos ganhamos um ano de expectativa de vida, mas alerta o que o crescimento por faixa etária já demostrou, a fertilidade está caindo rapidamente.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) caracteriza o envelhecimento populacional como triunfo da humanidade no século XX, decorrente do sucesso de políticas de saúde públicas e sociais. Em contrapartida, caso não sejam elaborados e executados políticas e programas que promovam o envelhecimento digno e sustentável, a conquista pode transformar-se em problema.

No Brasil, a Lei 10741/2003 dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Lá, os artigos oitavo e nono, no Capítulo I / Direito à Vida, do Título II / Dos Direitos Fundamentais, dispõem respectivamente: o envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social garantido por lei; é obrigação do Estado garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.

O horizonte a estimular a caminhada é o do envelhecimento ativo e feliz, fomentado por políticas e programas de promoção de sociedades inclusivas e coesas. Há de chegar o dia em que os governos todos não só legitimem como priorizem os direitos à vida, à dignidade e à longevidade. Questão de segurança e saúde pública, mas, sobretudo, de justiça social.

A Organização das Nações Unidas (ONU), ao tratar da inversão populacional mundial, quando o número de idosos ultrapassa o de jovens, prevista para 2050, deixa clara não só o novo papel do idoso na sociedade, como a necessidade dele ter sua independência, autonomia e real inclusão promovidas.

Impossível deixar de trazer o pensamento de Epicuro (341–271 a.C.). O filósofo grego defendia a presença de três fatores indispensáveis para a felicidade se instaurar na vida humana: autossuficiência, amigos e filosofia. Autossuficiência como o equilíbrio que afasta o risco da escassez. Amigos para desfrutar a vida em boa companhia. Filosofia para engrandecer a vida, estimular diálogos, intensificar a cor e o brilho dos dias.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) está desenvolvendo uma Estratégia Global e um Plano de Ação sobre Envelhecimento e Saúde. O marco será elaborado e aprovado em consulta com os Estados-membros. Até agora foram definidas, como ações prioritárias, a criação de ambientes age-friendly (amigáveis aos idosos) e melhorias no monitoramento estatístico do bem-estar dos idosos. Outras propostas incluem a adaptação dos sistemas de saúde às necessidades das pessoas com 60 anos ou mais.

Em Outubro de 2017, em atenção ao Dia dos Idosos, a OMS fez assertivo apelo por políticas de atendimento mais eficazes para pessoas com 60 anos ou mais, atestando que os sistemas de saúde do mundo não estão prontos para atendê-los. Também defendeu medidas para evitar declínio nas capacidades físicas e mentais ao longo da Terceira Idade e destacou:

1. Até 2050, o número de pessoas com 60 anos ou mais chegará a 2 bilhões, mais que o dobro dos 900 milhões de indivíduos nessa faixa etária registrados em 2015. Os idosos representarão um quinto da população do planeta.

2. Embora as pessoas vivam mais, há poucas evidências de que os idosos de hoje vivam sua idade avançada melhor que seus pais. Apesar de uma diminuição nas taxas de incapacidade grave nos países de alta renda nos últimos 30 anos, não houve mudança significativa nas taxas de incapacidade leve e moderada durante o mesmo período.

3. A articulação das diferentes áreas da saúde ainda é um desafio no atendimento aos idosos. Pesquisa realizada em 11 países de renda alta, 41% das pessoas com 65 anos ou mais relataram problemas na coordenação dos prestadores de cuidados nos últimos dois anos. A OMS conta com diretrizes específicas para reverter esse cenário e aprimorar atendimento por meio de iniciativas como planejamento e avaliação integral dos pacientes.

Um estudo publicado no periódico Lancet Global Health revelou crescimento no abuso de idosos ao redor do mundo: um em cada seis idosos sofre alguma forma de abuso. Quase 16% das pessoas com 60 anos ou mais foram submetidas a abusos psicológicos (11,6%), abusos financeiros (6,8%), negligência (4,2%), abusos físicos (2,6%) ou abusos sexuais (0,9%).

Os estereótipos associados à terceira idade também precisam ser combatidos. As pessoas mais velhas são frequentemente consideradas frágeis ou dependentes, além de serem vistas como um fardo para a sociedade. A saúde pública e as comunidades como um todo precisam abordar essas e outras questões, que podem levar a discriminação e afetar a implantação de políticas públicas.

Os pilares do Envelhecimento Ativo — saúde, aprendizado ao longo da vida, participação e segurança — oferecem um marco político amplo e integrativo para a orientação de ações estratégicas do setor público. Aí se inserem ações preventivas, restaurativas e paliativas. Todas intervenções, sociais e sistêmicas, alicerçadas pelo exercício da cidadania e fortalecimento dos direitos da pessoa.

“Os direitos humanos têm a ver com empoderamento, e empoderamento tem a ver com resiliência.” / Karla Giacomin (Professora de Geriatria, Universidade Federal de Minas Gerais; Ex-Presidente do Conselho Nacional para o Direito dos Idosos)

Movimentos Sociais

Entre os movimentos que tem crescido mundialmente estão os Grupos de Apoio e Convívio, onde a troca humana também é impulsionada pela socialização de estímulos sensoriais e intelectuais. As classes de maior poder aquisitivo contratam empresas especializadas em cursos e viagens direcionados a esta faixa etária. Muitos amigos já planejam a fase da maturidade, em preparo consciente para a velhice, já idealizam construir conjuntamente vilas e comunidades minuciosamente desenvolvidas para facilitar o dia a dia, estimular o convívio e propiciar liberdade com segurança e autonomia. O próprio mercado imobiliário está atento a este público e tem surpreendido com o conceito de Sênior Cohousing: empreendimentos que preservam a privacidade do idoso, em metragem reduzida, investindo na socialização, praticidade e segurança das áreas comuns.

Fora a utopia que brota no horizonte, estamos bem longe de ver nossos idosos serem abraçados e estimulados como deveriam. De um lado sobram depósitos de inutilidades, como lastimavelmente se converte parcela considerável da população brasileira, pejorativamente taxada de velha, como se estorvo fosse. De outro faltam locais e iniciativas, sobretudo públicas, que restaurem a dignidade e façam aflorar a sabedoria destes cidadãos. Eles precisam ser escutados, legitimados e estimulados a fazer crescer outras gerações pela partilha de suas experiências, maior riqueza da vida.

Não há desperdício comparável a uma sociedade descartar a abundância infinita que é o potencial humano, ainda mais quando acompanhado da força da experiência. Há uma fonte residual latente em todos nós, à espera do menor impulso para jorrar. Independente da cronologia e da historicidade que nos acompanham. Independente dos êxitos e fracassos que colecionamos. Independente da vestimenta que nos cobre o peito, se há vida, um coração palpita. E enquanto palpita um coração, ele comporta sentimentos e sonhos. Sentimentos e sonhos compartilhados trazem o potencial de transformar vidas e construir novas realidades.

Nesta linha, digno de nota as Bibliotecas Humanas, onde se consultam pessoas no lugar de livros, se celebra a diferença e se promove o diálogo, a tolerância, o entendimento e o aprendizado. A experiência iniciada em 2000 — pela ONG Stop the Violence, na cidade dinamarquesa de Copenhague, com intuito de reduzir a discriminação entre os jovens — conquistou adeptos e ultrapassou fronteiras. Da mesma forma merecem todo o reconhecimento iniciativas de rede de suporte psicossocial, onde as intervenções grupais dialogam com os desafios do processo de envelhecer, enaltecendo o cuidar de si e do outro, amparadas na socialização, na partilha de experiências e em estímulos físicos, sensoriais e mentais. Ações restauradoras de sentido e significado renovam importância e pertinência de todos os envolvidos: cuidado e cuidador, familiares e apoiadores.

“Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento, e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade.” (C.G Jung, 1986, p.5)

O Sentimento de Inadequação no Envelhecimento

As pesquisas de Martin Seligman nas décadas de 60 e 70 lançaram a base da teoria psicológica do desamparo aprendido, ligado à depressão. Grosso modo, justo no combate a estas questões, apoiado na resiliência e no otimismo, nasceu, pelas mãos de Seligman, nos anos 2000, a Psicologia Positiva. Hoje amplamente conhecida como ciência do bem-estar humano, promete melhorar a qualidade de vida dos indivíduos e prevenir patologias. A abordagem é baseada no modelo PERMA, cinco elementos que criam a base de uma vida florescente: emoções positivas (Positive emotion); engajamento (Engagement); relacionamentos (Relationships); significado (Meaning); realizações (Accomplishments). Pesquisas mostram que níveis elevados dos componentes do PERMA fortalecem a resiliência, protegem contra emoções negativas, reduzem a depressão e aumentam a satisfação com a vida. Posteriormente (Modelo PERMA+) quatro acréscimos foram feitos: atividade física, nutrição, sono, otimismo.

“Embora você não possa controlar suas experiências, você pode controlar suas explicações.” (M. Seligman, 2002)

Na obra Em Busca de Sentido, Viktor Frankl, psicólogo e ex-prisioneiro de campo de concentração, relata sua experiência de vida e aborda a linha de psicologia de sua autoria, a Logoterapia: psicoterapia existencial focada no sentido da vida e na vontade de significado (do grego, logos = sentido, significado, propósito). Lá ele deixa o veemente alerta para a inversão de valores presente em nossa sociedade, expressa no sentido do utilitário em detrimento do digno.

“A sociedade de hoje se caracteriza pela orientação do sucesso pessoal e, consequentemente, adora pessoas bem-sucedidas e felizes. Em particular, adora os jovens. Praticamente ignora o valor de todos os que são diferentes e, ao fazê-lo, apaga a decisiva diferença entre ter valor no sentido de dignidade e ter valor no sentido de utilidade. Se não se está consciente desta diferença, mas se se considera que o valor de um indivíduo nasce apenas na sua utilidade atual, neste caso, acreditem-me, é apenas por incoerência pessoal que não se advoga a eutanásia na linha do programa de Hitler, isto é, matar por “piedade” a todos aqueles que perderam sua utilidade social, seja devido à idade avançada, doença incurável, deterioração mental ou outra deficiência qualquer. Portanto, fiquemos alerta — alerta em duplo sentido: Desde Auschwitz nós sabemos do que o ser humano é capaz. E desde Hiroshima nós sabemos o que está em jogo.” (V. Frankl, 2012)

Por sua vez, na obra Perdas e Ganhos, Lya Luft prega a alforria de termos o direito de sermos nós mesmos em qualquer idade. É fundamental criarmos almas livres e a velhice não pode ser uma revogação individual. A transformação deve nos acompanhar até a hora derradeira. Há que aprendermos a separar tragédias de chatices. Perdoar é não reter o outro nem a si próprio nos atos do passado. Perdoar é fluir é alforriar.

A busca deve ser pelo comportamento íntimo do que nos dá felicidade. Neste processo a perda pode e deve ser transformada em ganho. O desafio que a vida nos apresenta não é tão importante quanto é a forma com que nos relacionamos com ele.

O filósofo iluminista Denis Diderot (1713–1784) recomendava a todos a leitura de Sobre a Brevidade da Vida, Sêneca (4–65 d.C.), um dos filósofos mais poderosos de Roma, estoico, tutor de Nero, se suicida por ordens do próprio, quando Imperador. A obra alerta o desprezo humano por sua maior riqueza: o tempo. Vivemos ocupados, sem consciência do que fazemos, por que fazemos e para quê fazemos. A vida é mais longa do que imaginamos. Nós, na inconsciência do processo, reiteradamente negligenciamos importâncias por conta de urgências. Façam com que suas ações tenham significado!!! — Bradariam os dois filósofos.

Sêneca defende a filosofia incorporada no cotidiano e o ócio como postura frente à vida. Resgata os Divinos Ócios, de Platão, momentos contemplativos junto a natureza inseridos na rotina diária. A observação da natureza nos leva a fazer o que nos corresponde, dharma hindú, vocaccio romano. A harmonia pretendida, do domínio da psique, não está na frente, mas no caminhar. Longos caminhos requerem paradas estratégicas.

Crítico feroz da nossa barganha com o tempo, Sêneca lembra que devemos usufruir de todos os nossos momentos, engrandecê-los agora, e não depois. A filosofia possibilita isso, pelo fazer diferenciado que brota do discernir.

“Os filósofos são os únicos que vivem de todos os homens; aproveitam bem o tempo de sua existência, à qual incluem todas as outras idades que a eles precederam. (…) Brevíssima e agitadíssima é a vida daqueles que esquecem o passado, descuidam do presente e temem o futuro; quando chegam ao seu crepúsculo compreendem o tempo que em seus dias perderam em não fazer nada.” (Sêneca, 2006)

Reconhecendo Vulnerabilidades e Potencialidades

“A construção da resiliência é um fator chave para proteção e promoção de saúde e bem-estar no âmbito individual e comunitário.” / Health 2020, Estratégia para Políticas de Saúde na Europa, Organização Mundial da Saúde.

As dificuldades e limitações desencadeadas com o processo de envelhecimento são ditadas também pela forma com que a pessoa percebe seu envelhecer, a maneira com que aceita ou repele as alterações somáticas e funcionais.

Entre os fatores para o desenvolvimento de conflitos e crises comuns a esta fase da vida: doenças crônicas; modificações orgânicas versus auto-imagem; viuvez, morte de amigos e parentes; ausência de papéis sociais favoráveis; dificuldades financeiras. Todos contribuem para a queda na auto-estima do idoso, que buscará recursos internos e externos para manter a identidade diante de um turbilhão de mudanças. Jung alertava que o balanço entre limites e perdas nesta fase pode abrir novas possibilidades.

Não é raro o idoso sofrer uma paralisação ou bloqueio emocional em relação às respostas que emite aos estímulos externos, com o desencadeamento de doenças como a depressão. Mas há a possibilidade dele adaptar-se com maior facilidade, reagindo de maneira positiva às mudanças ocorridas. Entre as alternativas para o enfrentamento, em destaque o suporte familiar e a participação em grupos de terceira idade. A identidade individual é uma instância que depende do outro.

Nas íntimas e constantes vivências de Lya Luft (Perdas e Danos) com grupos de homens e mulheres, merecem destaque: desejos e medos parecidos; busca por intimidade; homens mais solitários que as mulheres, já que não foram treinados para mostrar fragilidade diante de outros homens; medo dos homens perderem a condição de provedores; infantilização da mulher oculta no fato de querer ser protegida e ser autoritária; excessos de energia masculina (yang) e energia feminina (yin) causam as mesmas turbulências, emperram o caminho (tao): querer poder, ditadura do yang; querer amor, ditadura do yin.

Viktor Frankl constata, em pleno campo de concentração, como prisioneiro, que o ser humano não é totalmente condicionado pelo ambiente, pelo contrário, que é autodeterminante! Ele não só existe, mas decide qual será sua existência, o que se tornará no momento seguinte.

A motivação por manter-se vivo envolve: liberdade interior; futuro com motivo (do latim: finis, fim e meta); sentido da vida / escolha e responsabilidade, dar respostas as questões que a vida levanta; sofrimento e realização, não tenho que sofrer para me realizar, mas posso me realizar apesar do sofrimento; a libertação ocorre primeiro internamente, sempre.

A velhice, quando não bem preparada e recebida, pode apresentar consequências similares as relatadas por Frankl, em decorrência da permanência no campo de concentração: vida psíquica reduzida a um nível primitivo; ausência de sentimentos; hibernação cultural; fuga para dentro, como poder de resistência, forma de manter a identidade, maneira de resignificar a experiência com plena consciência do processo por que passa; arte e humor pra afugentar fantasmas; inveja dos que não estão na mesma condição; impasse entre decisão e destino, a incerteza e a falta de lógica estampada bloqueia a iniciativa e tomada de decisões; irritabilidade (violência gratuita) provocada por fatores fisiológicos (privação de alimento, falta de sono), tóxicos (nicotina, cafeína, álcool) e psicológicos (sentimento de inferioridade).

“Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem um máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência. O célebre primeiro princípio de Spinoza (uma única substância para todos os atributos) depende desse agenciamento, e não o inverso. Há um agenciamento-Spinoza: alma e corpo, relações, encontros, poder de ser afetado, afetos que preenchem esse poder, tristeza e alegria que qualificam esses afetos. A filosofia torna-se aqui a arte de um funcionamento, de um agenciamento.” (G. Deleuze, 1998)

Tensão entre Cuidador e Cuidado

Para que a tensão seja justa e o diálogo entre Cuidador e Cuidado se estabeleça de forma mais harmoniosa possível, é fundamental que o cuidador também seja cuidado. Angústia, ansiedade, tristeza, solidão e cansaço figuram entre os aspectos percebidos por familiares que desempenham a função de cuidadores, alguns abrindo mão de suas próprias vidas.

Faz-se imperioso um espaço para a reflexão do ato de cuidar, detectando os aspectos negativos e positivos envolvidos, despertando o olhar mais atento para as reais necessidades do idoso e do próprio cuidador, para melhor e mais humanamente compreendê-lo e atendê-lo. Entre as necessidades do cuidador: preservar momentos pessoais de atividades prazerosas e ter acesso aos estudos transdisciplinares sobre longevidade.

Considerações Finais

Ao analisarmos a trajetória humana, a ciclicidade se destaca em momentos de ascensão, manutenção e declínio. A incerteza diante dos desafios de cada época é presença constante, ainda que ora acentuada, ora suavizada. Lidar com ela é tema filosófico milenar, presente em simbologias teológicas várias com diferenciações mínimas ao longo do tempo (cronologia) e espaço (geografia). Seus referenciais arquetípicos, que mobilizam mitos e experiências conscientes de reunião com um organismo maior que integramos — receba o nome de Natureza, Princípio Inteligente, Não Acaso ou Deus — têm sido constantemente revisitados pela vanguarda das ciências e fundamenta a maestria humana em lidar com o mistério que ainda é a existência. Nesta caminhada, destaca-se a ponte construída entre mundos interno e externo, que favorece o diálogo entre texto e contexto e, assim, melhor gerencia os estressores cotidianos e os efeitos psíquico-somáticos que em todos nós provocam.

Com a Terceira Idade não seria diferente, já que o período inaugura a etapa da vida comumente acompanhada de maiores questionamentos sobre os caminhos percorridos e as escolhas feitas. Quando estas divagações e análises já nos são habituais os estranhamentos não são tantos porque fomos conquistando, paulatinamente, maior consciência ao logo da caminhada. Ainda que impacto da incerteza diante do futuro não deixe de nos assombrar, nos relacionamos com ele de forma mais leve e pacífica, sem o sufocante peso da angústia e ansiedade exacerbadas, associadas às forças paralisantes da depressão e do pânico, assustadoramente presentes na sociedade contemporânea de forma reiterada e cada vez mais precoce.

A alteração de papeis sociais (eu estou), em fluxo constante, não perturba tanto porque constata-se a presença permanente do ator (eu sou) em cada um deles. Justo aí são amplamente conciliáveis os filósofos gregos pré-socráticos: Heráclito (540–470 a.C.) e Parmênides (510–445 a.C.). Ambos anunciam o que permanece invisível aos olhos do homem em sua lida cotidiana: encontrar o que se vai e o que fica em cada um de nós, como unidade, a nossa singularidade. Singularidade que deve ser detectada, fortalecida e preservada em qualquer estágio da vida, já que à semelhança de eixo pelo qual se movimenta a roda, é ela que nos transmite a segurança e equilíbrio necessários para nos movimentarmos em meio as constantes mudanças em nós mesmos e no mundo em que estamos inseridos.

Detectá-la demanda quietude e silêncio. Mas também, convívio e partilha. Legitimá-la e respeitá-la preserva a dignidade e saúde da pessoa e deveria ser prioridade das políticas públicas comprometidas com a Transformação Social, o Desenvolvimento Humano e a Sustentabilidade. Este é um dos poderosos componentes que enriquece o solo e possibilita o germinar da semente da Justiça Social. O florescimento e frutificação desta metáfora depende de cada um de nós, enquanto cidadãos.

A atividade consciente da história permite ao ser humano a fundamentação do Eu Existo, tomando consciência de sua perdurabilidade por meio da tensão harmônica entre Eu Sou e Eu Estou. O incômodo provocado por imprevistos de toda a ordem gera o movimento pelo porquê dos fatos, que confere sentido e significado a existência, coroa a felicidade.

“O acaso não é mais que medida da nossa ignorância”, um dos maiores aforismos filosóficos. Lembremos que a Filosofia da História integra a História, permite a sua percepção como ser em movimento, como a busca da própria vida, no fluxo da existência, pela verdade dos fatos. Para além de qualquer definição, a história é uma espécie de fio condutor da consciência humana. Cada um e todos nós, a todo momento, fazemos história. Queiramos ou não, a pena está em nossas mãos. Estamos não só inseridos no processo histórico, como o escrevendo. Nossas contribuições o alcançam, senão em grandes feitos, em pequenos fatos cotidianos. Então, sigamos com renovadas força, coragem e consciência!

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Ana Rita de Calazans Perine

Filósofa Clínica, Pesquisadora, Educadora, Mobilizadora Social e Empresarial / Instituto ORIOR — Resgate Filosófico, Transdisciplinaridade e Sustentabilidade.