Experiência da Dor na Filosofia

Especificidades Clínicas

Ana Rita de Calazans Perine
4 min readMar 22, 2023

Muito antes das Psis — Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise — se constituírem como ramo do conhecimento a serviço da saúde mental, a Filosofia já estava amplamente consolidada como a fonte dos “remédios para alma”. Assim fazia questão de definir Sêneca, um dos maiores intelectuais do Império Romano, na defesa da imperturbabilidade da alma, ataraxia, termo criado por Demócrito.

O tema da imperturbabilidade nos remete a constatação de elementos passíveis de nos desestruturar e, quiçá, emancipar enquanto seres humanos. Entre eles: o sofrimento, a dor. Decifrá-la no tempo de uma vida, sem deixar de dialogar com referências cotidianas, pode mobilizar muitos.

Esse olhar buscador e aprendiz permeia a História da Filosofia e marca a Filosofia da História. No caso da História da Filosofia, com o cortejo cronológico das escolas e correntes filosóficas, ora acatando e desenvolvendo premissas já elencadas, ora refutando-as e apresentando novas. No caso da Filosofia da História, pela constatação subjetiva do eu existo e sou capaz de objetivamente ditar caminhos de expressão personalizada, escrever de próprio punho minha história, lida na trajetória existencial que percorro. Ambas conectadas e retroalimentadas pelo assombro e pela possibilidade de conhecimento que advém do viver. As inquietações como pontes: além dos pesares, os pensares.

A Filosofia, “amor à sabedoria”, traz em seu seio a raiz da Psicologia, “estudo da alma”. Na origem o termo se referia as pesquisas e aos pesquisadores de Aristóteles. Hoje, na dinâmica viva que é a linguagem, aponta para a ciência que estuda o comportamento e os processos mentais dos indivíduos.

Entre os alertas da Filosofia em relação às Psis: ao rotular, patologicizar, enquadrar e medicar excessivamente correm sério risco de abortar subjetividades, nos piores casos chegam a apontar como lixo residual a ser esquecido e/ou eliminado o que é matéria-prima a ser trabalhada. Como apontam problemas segundo teorias e tipologias pré-definidas, as soluções encontradas não raro passam pelo anestesiamento do humano por detrás do fenômeno, a singularidade acaba por ser silenciada e a liberdade restringida.

A crítica aqui não se direciona aos profissionais dessas áreas, conhecedores que somos do olhar humano e da maestria de muitos, mas às possíveis limitações dos métodos utilizados. Além de reiteradamente questionadas por pensadores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari, as limitações são também sentidas por profissionais que se aproximam da Filosofia Clínica, seja por curiosidade, autoconhecimento ou aprimoramento de seus próprios ferramentais.

A Filosofia Clínica não se realiza a priori. Seu olhar humano e aprendiz impõe ser a alteridade que alcança o mapa-guia da clínica, o que requer a subjetividade o mais desperta e descondicionada de rótulos e teorias possível, maneira de melhor ser acessada e percebida em seus peculiares modos de ser, estar e agir. Ela difere da Filosofia Prática e de Aconselhamento, embora em alguma medida possa englobá-las, no momento oportuno, desde que o caso clínico o demande.

Ainda que embasada em mais de 2500 anos de Filosofia, a prática da Filosofia Clínica não segue diretrizes engessadas por correntes filosóficas. Pelo contrário, as coloca a serviço da plasticidade terapêutica. De forma recortada e combinada, as teorias filosóficas auxiliam o aparecimento e a sustentação das singularidades acolhidas, fazendo única e inédita cada sessão.

Buscando alcançar a representação de mundo de quem acolhe, a Filosofia Clínica se abre para a novidade a cada renovado instante. Ela reiteradamente começa a partir da suspensão de juízos que possibilita a interseção entre representações de mundos distintas, viabilizada pela humanidade presente ao longo do processo e resguardada pelos papeis existenciais que a integram, especificamente o ser terapeuta e o ser partilhante. A redução fenomenológica por parte do Filósofo Clínico é fundamental nesse processo. Para dar espaço, voz e rosto ao outro diante de si há que momentaneamente se afastar de seus modos próprios do ver, sentir e ser.

Como terapeutas não nos cabe interpretar fenômenos, mas compreendê-los a partir do sujeito que os experimenta. Filósofo como um amigo e buscador do saber. Clínico como um inclinar-se, um aproximar-se ao mundo do outro para melhor observar as edições de historicidade narradas nas partilhas. Fragmentos dos atravessamentos vividos com traços e cores próprias, mesmo que não alcancem a integralidade do sujeito.

Maurice Merleau-Ponty afirma que a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo. O que nos lembra de Sócrates, só sei que nada sei. Trazendo para a roda Arthur Schopenhauer, o homem como medida de todas as coisas, esse reaprender a ver o mundo acontece a partir do sujeito que fala!

Quando Margaret Mead aponta um fêmur fraturado sanado como primeiro sinal de civilização, resgata o necessário reconhecimento da alteridade: a ampliação do olhar que, enxergando além do próprio mundo, alcança e se compromete com o mundo do outro. Nesse momento dor, atenção e cuidado se entrelaçam em prol da vida.

NOTA — Artigo originalmente publicado na Revista Casa da Filosofia Clínica: Edição 04 / Outono 2023, Página 14.

(http://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2023/03/revista-da-casa-da-filosofia-clinica.html)

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Ana Rita de Calazans Perine

Filósofa Clínica, Pesquisadora, Educadora, Mobilizadora Social e Empresarial / Instituto ORIOR — Resgate Filosófico, Transdisciplinaridade e Sustentabilidade.