ESCRITA COTIDIANA - A maior, dentre as valias

Ana Rita de Calazans Perine
4 min readOct 14, 2023

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Treze de Outubro, dia que celebra o escritor, em referência aquele, não isento de críticas, que tem certo traquejo e gosto no registro das palavras ou que disso vive. A mim agrada muitíssimo expandir o termo, pensar que escritores de nossa trajetória podemos ser todos, alguns com circunstâncias mais facilitadas que outros, talvez com um pouquinho mais de consciência de seus atos, cientes das reverberações que seus movimentos são capazes de provocar na grande teia da existência. Seja na tradução estrita do termo, seja na ampliada, escritores capazes de entrar em dialógica. Costumam conviver harmoniosamente sempre que imaginação e experiência acolhem sentido e significado. Ocasião em que vida e obra se iluminam, vertem amor e criatividade ao ajustar palavras e gestos ao longo dos dias.

Aí volto no tempo, lembro de mim e de meus irmãos pequenos... Fomos criados à piqueniques, histórias, suco de uva, nata fresca e farinha de milho torrada pessoalmente pela Nonna: avó paterna que carinhosamente trazia o ingrediente da colônia italiana (Linha 28) até a sede de Gramado, com a recomendação expressa de utilizar para engrossar as mamadeiras e mingaus dos netos. Isso muito antes da farinha láctea alcançar as prateleiras dos supermercados, pelo menos os das bandas de cá.

Junto da farinha vinha uma banha de porco novinha, para eventuais assaduras. Claro que já existiam outros produtos, mas a Mãe - para alegria do Pai, da Nonna e do Nonno - jamais torceu o nariz para a banha, caprichosamente colhida e amorosamente ofertada. Acredito mesmo que por ela tivemos nossas bundocas besuntadas um bom par de vezes.

O suco de uva era tão concentrado e puro que, sob reprimendas do Pai e dos Nonnos (um sacrilégio), eventualmente o batizávamos com um pouco de água.

Nata, pasmem, comíamos "no 28" em pratos de sopa. Conchas generosas sobre pedaços rasgados de pão sovado, polvilhado, para finalizar, com açúcar cristal. Já ficávamos aguardando o preparo com as colheres em punho. Ah! Se o nosso cardiologista de agora soubesse...

Piqueniques, foi aprendermos a caminhar com certa firmeza para sermos iniciados no cerimonial que os envolvia: da escolha do percurso e local de parada aos quitutes a serem saboreados em meio as brincadeiras. No mínimo um por semana, com clima ameno chegávamos a três. Ou em família ou com outros amigos que a nós se juntavam sempre que convidados e pelos pais liberados.

E assim chego aos agendamentos de minha Mãe no conhecimento e domínio das palavras, sempre com uma noção de propósito que à época nos escapava completamente...

Uma vez por semana, em geral às sextas-feiras, além dos deveres que recebíamos dos professores, ela nos impunha um desafio aceito com naturalidade, incorporado a nossa rotina, ainda que dele quiséssemos logo nos livrar para iniciar as peraltices. Listava cinco palavras e com elas tínhamos que produzir um texto breve. No meio de quatro conhecidas uma sempre muito estranha, que nos fazia ter que recorrer ao dicionário. Recordo nitidamente de um termo que nos deixou encafifados: "convescote"! O que seria isso?! Sol, árvores, guloseimas e formigas, claro, conhecíamos bem essas palavras, mas convescote?!

Ao consultarmos juntos o dicionário, o espanto foi grande, não é que era piquenique!!! A partir da descoberta as outras palavras adquiriram renovado sentido. Trocamos olhares despertos, pegamos cadernos e, mãos à obra!

Mais tarde, quando chegasse em casa, a Mãe leria nossas produções, o que sempre nos causava certa apreensão, mas antes disso acontecer teríamos muitas horas de brincadeiras no pátio, com amigos que não tardariam a chegar... O dia era de sol, a correria seria grande, árvores para escalarmos não faltariam, o esconderijo das guloseimas não era tão secreto assim, estava livre de formigas, mas não do ataque voraz de uma tribo de crianças famintas. Eventualmente o acesso nos era permitido, afinal, junto das frutas e sanduíches, elas também compunham o cardápio dos nossos já famosos convescotes.

Que saibamos nos expressar com a leveza e experiência de quem percebe o alcance de sua voz, a modula e imposta na justa medida, com o cuidado de crescer junto a outras tantas vozes, em gentis avanços e generosos recuos, eliminando ruídos em favor da música. Essa escrita, que bem pode prescindir de papéis, títulos, notações e canudos, tem o poder de desenvolver seres humanos, ampliar famílias e potencializar sociedades.

Desde criança tive o privilégio de estar cercada dessa espécie de escritores, com ou sem livros ao alcance das mãos, mas com a sensibilidade de reconhecer a vida e por ela se deslocar colhendo belezas, mesmo em meio a adversidades... Eles sempre foram os meus melhores mestres. Aprendi e sigo aprendendo com olhares, abraços, sorrisos e silêncios.

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Ana Rita de Calazans Perine

Filósofa Clínica, Pesquisadora, Educadora, Mobilizadora Social e Empresarial / Instituto ORIOR — Resgate Filosófico, Transdisciplinaridade e Sustentabilidade.