
DESCONSTRUÇÃO
Há quem defina uma cirurgia plástica como um acidente controlado… Cá estou acidentada, quem diria…
Sofre algumas pressões quem tem o privilégio e o incômodo de ter uma Mãe sinônimo de elegância e bem cuidado. Me encontro neste estado de baiacu — inchada, ardida e latejante — muito influenciada por ela. No mínimo setenta por cento da decisão da intervenção vem com sua assinatura…
- Precisas dar um suavizada nas linhas do tempo, Minha Filha! Já tens cinquenta anos, é o momento ideal para isto!
A conhecendo como bem conheço, sei que pensava…
- Guria, melhor entrares na faca logo antes que o esboço de Salvador Dali se complete.
Fato é que minhas pálpebras já começavam a derreter… Embora tenha aprendido a me confrontar no espelho sem ser invadida por críticas excessivas, é inegável certo incômodo causado pelo cortinado começar a descer sobre os olhos. A tendência seria minha visão lateral ficar prejudicada… A pálpebra até pode despencar, mas jamais permitirei que se fechem as janelas de minha alma, resistia.
É um tanto trabalhoso e dolorido abrirmos uma picada em meio a densa floresta de nós mesmos, onde o traçado físico é impresso pela força de emoções e pensamentos, capazes de nos envolver em turbilhões que momentaneamente podem nos roubar o chão. Mas a cada pequeno espaço aberto, raios de sol emanam com maior e renovada força, deixando livre e desimpedido o caminho, pronto para novas construções.
Associei a cirurgia das pálpebras um mini-lifting que, com toda sinceridade, achei exagero do médico e da Mãe, não precisava. Os cortes me desmentiram, eles tinham razão.
Imaginem a situação… Um capacete de gaze emoldurando o rosto disforme e arroxeado. Assim cheguei em casa, liberada do hospital no mesmo dia. Depois de me acomodar na cama como podia, a Mãe exclama na tentativa de me animar…
- Minha Filha, tu estás tão bem!
Foi a piada do século, gargalhei dentro do possível…
- Bem medonha, né Mãe?!
Rimos muito.
Escrevo sem enxergar o que o meu traço imprime sobre a folha do papel, mas o faço por sentir minha visão interior nítida e clara. Pulsa em mim com maior força quem sou e o que me cabe nesta grande jornada de autodescoberta que é a vida.
É gratidão o que sinto. De certa maneira a desconstrução física chama atenção para o momento que vivo, onde dou novos contornos a minha existência. Caminhos e caminhadas são revistos a medida em que sonhos adormecidos são reativados.
Por vezes o corpo reclama, se assusta, teima em não abandonar a zona de conforto, mas a alma não! E é ela agora quem me impele a catar papel e caneta, mesmo distinguindo apenas vultos. Quer se projetar!
Sinto os meus caminhos abertos e iluminados. Sei que os conquistei com minhas decisões! Amparada por muitos que me cercam. Que jamais percamos a capacidade de inspirar e de sermos inspirados!
Mal distingo a folha onde escrevo da mesa que lhe serve de apoio, mas o cenário emocional que se descortina é límpido: eu sei quem sou, eu sei onde estou, eu sei para onde e como vou! Os impeditivos da minha visão estão sendo combatidos um a um, desmoronam na medida em que se expande meu alcance do infinito de mim mesma.
Que nossos olhos mantenham-se abertos e prontos para nos orientarem em novas buscas… Assim o é e sempre será!
P.S. — Que fique o registro da coragem ou inconsciência dos que se submetem a intervenções dessas. Coisa para fortes e loucos! Verdade seja dita, o pós-operatório é uma merda. Quem dera ficássemos em suspensão até a extração dos pontos e completa recuperação do corpo. Mas não há como pular etapas… Então, que o medo seja vencido, sempre que limitante. Sigo aqui, agora já enxergando e muito paulatinamente desinchando, passando em profusão de cores, das tonalidades roxa para amarelo esverdeada. Uma beleza…