CLARABOIA NO TEMPO — Historicizando Momentos
Redijo essas linhas sob efeito de psicotrópicos pesados. Faço como antídoto, lavagem estomacal redutora de toxinas cotidianamente ingeridas em sociedades insalubres e periculosas para o espírito humano. Esse tem sido o impacto de nosso momento histórico…
Hordas destilando ódio e praguejando sandices aprisionam em si próprios os pais de família, entusiastas profissionais, mães zelosas, amigos atentos, filhos dedicados. O medo abissal anima a fúria que aplaca buscas, fatos, verdades. Anestesia mentes, rouba alegrias, convulsiona relações, petrifica olhares, converte em geleiras corações. Ofusca, mina, aborta perspectivas. Impede que o sol nasça no horizonte.
É como se estivéssemos atados as nossas camas, olhando fixamente para o teto, na esperança de alcançar uma claraboia que permitisse do angustiante claustro nos livrar, ampliar olhares e contemplar…
Corpos fatigados não dão conta de quebrar a maldição do enrijecimento muscular que provoca dor e suspende o sonhar. Dia atrás de dia subjetividades reprimidas fatiam o tempo, absorvem a imposição de papeis que representam, obliteram voz, presença, espaço e momentos.
As cenas não se desenrolam, ações se avolumam, a vida não transcorre… Alheio as suas próprias verdades ou mesmo as reconhecendo, sem força de expressá-las (o que costuma causar ainda maior sofrimento), o ator se recolhe: impossibilitado, violado, vendido.
Não há distopia de plataformas de streaming capaz de superar as que nos atravessam diariamente… Entram em nossas vidas e clínicas sem pedir licença, nos esbofeteiam com agruras de estrondosos silêncios.
Onde falta palavra, costuma sobrar texto… Aí chegamos ao estado, como solo fértil, capaz de nutrir e possibilitar o saudável germinar de indivíduos, organizações e comunidades. Quanto mais distópico os tempos, mais utópicos deveriam ser os momentos…
Para sanar dor, recuperar mobilidade, impostar voz, permitir que ator no centro do palco se apresente em livre expressão, liberto de representações, seu modo próprio há de ser detectado, reativado e experimentado.
As maneiras singulares de lermos o mundo e a nós mesmos e de transitarmos por ambos podem nos brindar com potentes elixires. Bem dosados, aptos a equalizar cor, brilho e luminosidade na medida exata de nossas necessidades, nos permitem trafegar mais leves e plenos nossos dias.
São remédios existenciais que desopilam, desintoxicam, nos fazem resgatar alegrias e prazeres esquecidos. Levantamos de camas, transpomos claraboias, acessamos telhados e neles, sob céus estrelados de agradáveis noites de verão, sem pressa, cuidadosamente revisitamos o ontem, vivemos o hoje e descortinamos o almejado amanhã.
Em desdobramento do metaforicamente exposto, na tentativa de auxiliar o ponderar…
Na última década complexos e multifacetados componentes econômico-sociais e político-ideológicos tem adquirido maior relevância ao situar e determinar traumas, antes episódicos, agora seriais: no trabalho, nas famílias e na sociedade. Essas feridas na memória e no conceito de identidade do indivíduo reverberam na frequência de esvaziamento e fragmentação do eu, aqui traduzido como rapto da “vontade de poder ou potência”, segundo Friedrich Nietzsche, principal força motriz em seres humanos.
Além de mobilizar serviços de acolhimento / apoio, campanhas em defesa da vida e investimentos em pesquisas na área da saúde mental, o fato aquece ainda mais a já frenética indústria farmacêutica: de um lado, assertiva no lobby junto a OMS (Organização Mundial de Saúde) e a CID (Classificação Internacional de Doenças), hoje na 11ª revisão; de outro, sempre pronta a nos brindar com o que há de mais moderno nas suas unidades fabris. Quiçá sejam criteriosamente reguladas e embasadas por pesquisas clínicas sérias, que não prescindam da legitimação e escuta das subjetividades em questão.
Diante de acentuadas probabilidades em impor consensos, que nos acautele a indagação de Michel Foucault (França, 1926–1884 / filósofo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento): “Por que foi que fizemos dos manuais de diagnósticos a bula da vida?”
Paulatinamente a sociedade parece um pouco mais alerta. Ela já expressa a preocupação em ser a CID-11 absorvida pelos profissionais de saúde como base de orientação para identificar tendências e estatísticas na área e não para submeter seres humanos a pecha de rótulos.
Do famoso grito por mais vida de Antonin Artaud (França, 1896–1948 / artista plástico, poeta, ator, dramaturgo e pensador) tido como louco e internado por nove anos: “…para cada cem classificações, onde as mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas tentativas nobres se contam para conseguir melhor compreensão do mundo em real, onde vivem aqueles que vocês encarceraram?”
Nessa hermenêutica compreensiva dos fenômenos que nos chegam e invadem, que monitora pré-juízos, não teme dissensos e abraça o diverso, enquanto meta terapia que parte da e se desenvolve na escuta atenta das múltiplas linguagens da singularidade que acolhe, a Filosofia Clínica segue tendo muito a contribuir e aprender. De certo modo, claraboia no tempo de interdições de vidas, consciências e subjetividades… Que nesse exercício possamos movimentar o melhor de nós e crescer não só como profissionais que estamos, mas como humanos aprendizes que somos.
NOTA — Artigo originalmente publicado na Revista Casa da Filosofia Clínica: Edição 03 / Verão 2022, Página 8. (https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2022/12/revista-casa-da-filosofia-clinica-ed03-verao-2022.html)