Carta Aberta Instituto ORIOR

Ana Rita de Calazans Perine
4 min readMay 1, 2020

Nos últimos meses o mundo tem sido sacudido pela pandemia da COVID-19. Nunca um redesenho de nossa trajetória se mostrou tão premente: a civilização requer outros níveis de vínculo, princípios estruturantes que respeitem as individualidades e o seu papel singular na construção do coletivo humanidade.

Constrange a atualidade de Platão, em “A República” e “As Leis”, ao traçar as linhas gerais da sociopolítica, estabelecendo os conceitos e as diretrizes do Indivíduo, da Sociedade e do Estado. Um tripé coeso, simbiótico e interdependente:

Indivíduo — O que não pode ser dividido. Só o é quando pensado como unidade. Dois caminhos existiriam para fortalecer o conceito de Unidade: desligamento de todas as causas que lhe são estranhas (o ideal da filosofia) e a harmonia de modo que sejam funcionalmente uma (o ideal da política). O indivíduo político não nasce, faz-se. Demanda esforço e educação.

Sociedade — Associação voluntária de vários indivíduos com um fim primordial comum. Primeiro se dá um governo: atividades canalizadas por ofícios produzindo excelência a baixo custo; os mais aptos — verdadeiros dirigentes — nos cargos da Justiça (para arbitrar os diferentes) e do Poder (para impedir a exploração dos menos afortunados pelos mais fortes e hábeis).

Estado — Sociedade racionalizada, cuja finalidade é transcender a simples sobrevivência do indivíduo. Como o termo Indivíduo, tem uma natureza harmônica, corresponde a uma consciência unificadora. Não é apenas soma dos seus componentes, como a Sociedade. É harmonia e produto, uma potência em ato de governo. Um verdadeiro ato filosófico que não se limita as aparentes satisfações biológicas e sensíveis dos seres humanos, mas leva-os ao alto da escala evolutiva.

Nas entrelinhas destas definições, o filósofo grego, em pleno século IV a.C., retumba a incômoda verdade, o quão distantes estávamos lá e ainda agora do pressuposto indispensável do ideal objetivado que deveria ser o Estado: transcender grupos humanos, interesses e subestruturas. Só assim, por um verdadeiro ato de Amor, refletido no conceito de Justiça, o Estado Ideal de Platão seria capaz de conduzir os seres humanos a conquista deles mesmos e ao encontro com a felicidade.

Momentos de crise, ainda que extremamente dolorosos, descortinam a possibilidade de novos horizontes. A Pandemia, classificada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como uma crise sem precedentes no mercado global, cujos efeitos devastadores todos já sentimos, acrescida a projeção do FMI (Fundo Monetário Internacional) para recessão extremada em 2020 reverbera a hipocrisia e insensatez das nossas escolhas, tanto individuais quanto coletivas. A ausência do Estado e a precariedade de suas instituições reguladoras nunca foi tão questionada. O endeusamento do mercado e sua avidez por lucro foram pelo neoliberalismo exacerbado e doentio acentuados. Como consequência do vírus da ganância, atrelado a interesses econômicos míopes, passaram a irrisórios ou inexistentes os já parcos investimentos em saúde, educação e pesquisa. E a falácia desse crescimento continuado, desumano e sem freios, que já colecionava recordes em violência, tem, hoje, seus mais atrozes índices medidos em infográficos: o número de mortos.

Em meio ao cenário macabro, pequenos pontos de luz se multiplicam, mãos se unem em iniciativas sociais de resgate da visibilidade e da dignidade. Humanos enxergam e acolhem a vida, na corajosa busca por suprir a falência do Estado. Este, agoniza, movendo-se às pressas e atordoadamente. Por mais que corra e busque sincronizar falas e ações, muitas ainda se mostram antagônicas e pouco fidedignas. Em meio a tanta contradição, aumentada sensivelmente pela desinformação gerada, como ferramenta cruel e desesperada de manutenção de privilégios, emerge praticamente unânime: a necessidade de um real Projeto de Nação.

O termo, nação, vem do latim nātio que, por sua vez, deriva de nāscor, nascer. Entre os significados: nascimento, povo, espécie ou classe.

A base estrutural do conceito de nação radica na subjetividade do vínculo que une indivíduos, atribuindo-lhes a convicção de um querer viver coletivo e imprimindo-lhes consciência de que constituem um agrupamento distinto de qualquer outro, com vida própria, interesses especiais e necessidades peculiares. Preexiste sem qualquer espécie de organização legal. Território, língua, religião, costumes e tradição são elementos secundários integrados na sua formação.

Mesmo que a palavra nação seja utilizada comumente como sinônimo de país, território, povo e Estado, refere-se à substância humana que o forma, atuando o Estado em seu nome e no seu próprio interesse, por sua identidade e justiça, pelas suas expectativas, pelo seu bem-estar, por sua independência e por sua prosperidade.

A Pandemia vai passar e com ela, a depender da postura de enfrentamento adotada desde já, também passará muito das maneiras falaciosas, antinaturais e pouco dignas de nos relacionarmos. Que saibamos aproveitar este período de quarentena para reconectarmos com o melhor em nós e lapidarmos as formas como disponibilizamos este melhor para o mundo. Para auxiliar neste momento, destacamos ferramentas alinhadas aos três grandes movimentos que marcam a pós-modernidade: o resgate filosófico, a transdisciplinaridade e a sustentabilidade.

O desafio na construção de um Projeto de Nação que abarque os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável — ONU: atuarmos como Agentes de Transformação Global (ATG), orientando nossas condutas por uma leitura de mundo mais abrangente, capaz de aglutinar metainteligências na promoção de um diálogo íntimo e simbiótico entre os biogramas humano e organizacional, entrelaçando, por meio de círculos concêntricos, como gota no lago, mundos individual e coletivo, interno e externo.

O Biograma Humano possibilita o exercício da tomada de consciência dos nossos: estado de espírito, atitude mental, comportamento, ambiente íntimo e ambiente ampliado. O Biograma Organizacional amplia nosso radar perceptivo, integrando: indivíduo, organização, mercado, sociedade e planeta. Ambos atuam sobre a fragmentação do olhar, restauram a malha invisível que a todos une, na medida em que evidenciam e promovem ações mais conscientes e responsáveis.

Nesta jornada de reconstrução, todos os braços e abraços serão necessários! Contem conosco…

Ana Rita de Calazans Perine

Raimundo Soares

Outono de 2020

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Ana Rita de Calazans Perine

Filósofa Clínica, Pesquisadora, Educadora, Mobilizadora Social e Empresarial / Instituto ORIOR — Resgate Filosófico, Transdisciplinaridade e Sustentabilidade.