AUTOGENIAS MELÓDICAS — Entre o silenciamento e a voz
É próprio do viver proporcionar flutuações e ajustes ao longo de nossa trajetória, o que parece nos aproximar de um agendamento com força de axiologia: "no universo não existe linha reta"! Reiteradamente, ao longo das civilizações, essa máxima é lançada. Ainda que o termo agendado no intelecto possa comumente ser fundamentado em universalizações e pré-juízos, segue difundido e adquiri força de axiologia quando absorvido e integrado a nossa hierarquia de valores.
Não é minha intenção tratar da Geometria do Universo e da descrição científica e filosófica do espaço-tempo. Tampouco tenho fôlego e linhas de diagramação para tanto. Utilizo aqui a expressão grafada entre aspas metaforicamente, como um vice-conceito, na evidência de que: nossa movimentação através da existência possa implicar em assumirmos posições múltiplas e papeis variados, formas peculiares de ocuparmos espaços, que não só reconfigurem desenhos e percursos ao longo do tempo como nos aproximem de nossa própria verdade, afastando o que é silenciamento e libertando o que é voz em nós.
Nesse exercício de expressividade transferiríamos para a pluralidade que integramos parte significativa de nossa singularidade, deixaríamos algo de nós no meio que nos acolhe. Exercício que se mescla com as trilhas de autoconhecimento inseridas no fluxo do existir: paulatina e atentamente ponderaríamos sobre o que é som e o que é ruído em nós.
Quando René Descartes (século XVII) elabora a famosa máxima “penso, logo existo” (em latim: “cogito, ergo sum”), o faz no processo de associar a inquietude com a antessala do conhecer, por sua vez requisito para o saber, enquanto conhecimento aplicado. Seu método (composto por evidência, análise, síntese e enumeração) roteiriza e adiciona, problematiza a capacidade humana de encontrar a verdade. A inquietação gerada pela dúvida, advinda do ignorar, é apaziguada através da reflexão que nos conduz, pela busca, em direção ao desfecho: a constatação significante de ser e estar, atribuindo significado ao viver.
A existência, em sua diversidade, disponibilizaria ondas sensoriais múltiplas, lidas subjetivamente como benéficas ou não a depender da partitura. De um lado o som que em nós chega suave e apazigua poderia ser interpretado como choque. De outro, o ruído áspero que inquieta e atrita poderia ser entendido como encontro. A questão é que justo nessa dança de timbres e ritmos, de interseções tópicas e submodais, a música nasce em nós e é por nós e entre nós entoada. Como se a vida projetasse e propagasse a si própria, autopoiéticamente, exercitando maneiras de ser, perceber, estar e fazer.
Ondas sonoras nos atravessam e entrelaçam vida afora, em conjuntos mais ou menos harmônicos, calibrados pelas espacialidades das singularidades envolvidas. Em aproximações e distanciamentos comporíamos autogenias melódicas, novas formas de ser e estar em família e sociedade.
Essa plasticidade, que permearia a existência, faria vibrar no micro e no macrocosmos notações de expressão musical. Platão (IV a.C.) já falava dos padrões combinados, abstrações que estruturam o concreto. Ele trata disso em O Timeu, ao mencionar a Música das Esferas, resgatando e aprimorando em parte a matemática pitagórica. Platão e Pitágoras (VI a.C.), apontando um caminho espiralado ascendente, evidenciam a dualidade humana: terra e céu; corpo e alma; sensível e inteligível; físico e metafísico.
Entendo na mesma frequência tonal a diferenciação que faz Immanuel Kant (século XVIII) entre o númeno (a coisa em si, esfera do incognoscível) por detrás do fenômeno (a aparição da coisa, esfera do cognoscível). Em certa medida move grande parte das buscas humanas, filosóficas por excelência já que um processo gradual de deslocamento do ignorar rumo ao saber.
Relações, circunstâncias, locais e tempos amplificam assuntos. Entre importâncias e urgências, entre encontros e despedidas vamos redesenhando a matemática simbólica dos nossos momentos... Um filho que chega, um ente querido que parte; um projeto que nasce, outro que finda... Episódios que nos fazem relaxar ou tensionar os fios com que tecemos a trama do existir.
Passos dados, linhas cruzadas, fios partidos, trocados e emendados... Movimentos ampliados, reduzidos, abortados e reconstruídos... Olhares encontrados, corações acalantados, mentes abrigadas... Risos, choros, suspiros e tremores... Edições autorais, intransferíveis, indelegáveis de nossa historicidade.
Como fascinante caleidoscópio, em movimentos continuados e ritmados, nos deixamos levar por cores e formas, fragmentos de substâncias que nos compõem. Conveniente seria mantermos hasteados amorosidade, atenção, respeito, reverência e aprendizado. Honrarmos e celebrarmos os caminhos escolhidos e trilhados. Mesmo que além de alegrias nos causem desconforto, estranhamento e assombro, quem sabe não nos capacitem a ler no horizonte a possibilidade de mais um dia?!...
Términos que engendram novos inícios, talvez desse modo metafórico possa ser definida a partitura que por notação própria não silencia a vida. O pacote completo é capaz de fazer dinâmica, desafiadora e encantadora, tanto a existência quanto a partilha e a clínica... De repente a voz rompe o ruidoso silêncio, a presença se espraia na amplidão vazia dos constructos, a agonia se recolhe e a vida se sustenta.
NOTA — Artigo originalmente publicado na Revista Casa da Filosofia Clínica: Edição 05 / Inverno 2023, Página 16. https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2023/06/revista-da-casa-da-filosofia-clinica-inverno-2023%20.html