Arqueologia na Teatralização do Existir
Tecemos em tramas várias nossas trajetórias existenciais, ainda que se perca o fiar, oculto em meio à teatralização do existir. Para que se estabeleça uma aproximação capaz de sumariamente interligar feitos e fatos às pessoas, tempos e espaços, há que redobrarmos atenção e cautela. Convém ser o foco ampliado, a fim de acolher não só o eixo central da cena, que está sob a luz do holofote, mas a periferia que a possibilita: a movimentação à sombra do palco, a dinâmica da coxia e o que nos chega da plateia.
Como arqueólogos de nós mesmos, a historicidade é campo a ser minuciosamente mapeado. O teatro como lugar do mise en scène que nos toca e afeta, é a vida. As escavações e os destamponamentos que revelam requerem a delicadeza paciente de quem espana a poeira dos dias para visualizar a malha que faz de nós artefatos e artífices que somos.
O êxito é medido por singularidades acolhidas e preservadas em recíprocas inversivas, quando o eu e o outro se encontram no nós. Assim é na clínica, pela subjetividade que nos chega e provoca o fazer filosófico terapêutico. Assim é na arqueologia, pela inteireza do que é pelo sítio revelado. Assim é no teatro, pela experiência que proporciona. Nos três a alteridade subjacente, marca do descortinar constante das tramas da existência.
E a narrativa acontece, a vida se desenrola… Teseus, portando fios de Ariadnes como guias, adentram em mágicos labirintos em busca de míticos Minotauros. Em meio a exasperações próprias das jornadas de autodescobertas, atribuímos ferocidade e negamos a existência do que nosso olhar sozinho não alcança: a experiência humana, que acontece quando entramos em relação com o circundante.
Em meio a camadas de sedimentos, ora encobertos pela escassez árida do não dito e não vivido, ora soterrados pela abundância cruel que silencia o diferente, perspectivas ressurgem, sonhos se restabelecem, vidas são possibilitadas.
Avançar internalizando caminhos percorridos, revisitando trajetórias, detectando flutuações e promovendo ajustes de rota pode nos surpreender pelo reencontro do que nunca havia se feito distante. No centro do labirinto, o contrassenso se faz rei, o eixo canaliza a potência que se é, direciona e amplia os movimentos: exercício humano que nos permite encontrar o outro a partir do encontro de nós mesmos. É chegado o momento de ocupar o trono e resgatar a arte de confiar: fiar junto na direção de um amanhã mais equânime e humanamente sustentável.
NOTA — Artigo originalmente publicado na Revista Casa da Filosofia Clínica: Edição 02 / Primavera 2022, Página 9. (casadafilosofiaclinica.blogspot.com)